7 prisioneiros

Dalton Paula, Cor da Pele, 2012
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ GERALDO COUTO*

Comentário sobre o filme dirigido por Alexandre Moratto

Existe chaga mais dolorosa, iniquidade mais cruel que a escravidão? Com seu realismo brutal, um filme como 7 prisioneiros, em cartaz na Netflix, mostra que essa ferida não cicatrizou, não é reminiscência de um passado remoto, mas continua viva e aberta, infeccionando não apenas quem a sofre diretamente mas toda a sociedade que a tolera, quando não a incentiva.

Segundo longa-metragem de ficção de Alexandre Moratto (diretor do ótimo Sócrates, de 2018), o filme narra o drama de um grupo de rapazes pobres do interior que vão a São Paulo em busca de uma vida melhor e acabam prisioneiros do dono de um ferro-velho que os obriga a trabalhar de graça e morar num dormitório fétido não muito diferente de uma senzala.

Dito assim, pode dar a ideia de uma obra sensacionalista e maniqueísta, com vilões e vítimas bem demarcados e, de preferência, uma catarse edificante no final. Mas não é bem essa a realidade construída pelo filme.

Há, desde logo, dois personagens centrais: o jovem negro Mateus (o ótimo Christian Malheiros), que deixa o pequeno sítio da família para trabalhar na metrópole, e Luca (Rodrigo Santoro), o dono do ferro-velho onde Mateus e seus companheiros vão trabalhar. A argúcia narrativa do filme consiste em contrapor incialmente os dois e, aos poucos, aproximá-los, quase como se a história toda fosse o processo de transformação de Mateus em Luca, ou de oprimido em opressor. Mas não vamos nos adiantar.

Desde a primeira cena, tudo é narrado do ponto de vista de Mateus, mas isso não se dá de forma ostensiva, por meio de uma câmera predominantemente subjetiva ou recorrendo à muleta da narração em off, tão comum em nosso cinema social-didático. Ele simplesmente está presente em todas as cenas, mesmo que às vezes a certa distância, vendo, ouvindo ou intuindo tudo o que se passa. O filme é, em certo sentido, seu “romance de formação”, ou antes de deformação.

Vistas retrospectivamente, as primeiras imagens são significativas. Com martelo, pregos e tábuas, Mateus constrói uma cerca ou parede no sítio da família. A câmera está “do lado de cá” da cerca, e nós vemos o rapaz e o sítio no espaço que ainda resta, e que vai diminuindo ao longo da cena. De certo modo, somos nós, espectadores, que ficamos presos. E Mateus é quem prende. Essa inversão de perspectiva ganhará todo sentido no decorrer da narrativa.

A escravidão, parece nos dizer o filme, não é fruto da perversidade de alguns indivíduos, mas de todo um sistema de deformações: sociais, políticas, econômicas e, claro, morais. Em outras palavras, a perversidade existe, mas ela é produzida em série. O negócio lucrativo de Luca conta com a ajuda de policiais corruptos, fiscalização leniente, cumplicidade de comerciantes e clientes. Mais que isso: faz parte de uma rede mais ampla de exploração do trabalho escravo, de que um dos chefões é um político simpático em busca da reeleição, um pai de família preocupado com “o país que vai deixar para os filhos”.

Assim como o político é um pai dedicado, Luca é um filho exemplar, que comprou uma padaria para a mãe administrar, deixando de padecer sob a exploração de outros. O terrível é isso: os monstros são humanos, demasiado humanos.

É nessa situação, em que os espaços de manobra vão diminuindo como a paisagem vista nas primeiras imagens da cerca, que se move o jovem Mateus. É ele o grande personagem moral, aquele que se vê em todos os momentos diante de dilemas éticos e que, no limite, ao realizar a mais sórdida das ações, justifica-se dizendo: “Se eu não fizer, outro vai fazer”. O filme apresenta com sutileza esses momentos, essas encruzilhadas da conduta, sem excessiva ênfase, apenas mediante a duração um pouco maior de um plano, ou uma hesitação no olhar do ator.

É, em suma, um realismo substantivo, sem didatismo e sem discurso militante, que move 7 prisioneiros. Sua eficácia dramática e política está em seu caráter enxuto, em sua dinâmica implacável. É um dos filmes mais violentos dos últimos tempos. Não tanto pela violência física, que se resume a um par de coronhadas e dois ou três socos, mas pela brutalidade psicológica, espiritual e moral que ele dá a ver.

Em tempo: Alexandre Moratto, filho de mãe brasileira e pai norte-americano, estudou cinema nos EUA e foi assistente de Ramin Bahrani, diretor de O tigre branco. Consta que foi Bahrani que o aconselhou a voltar ao Brasil e fazer filmes inseridos na realidade social do país. Sócrates e 7 prisioneiros (produzido por Bahrani) são frutos desse sábio conselho.

*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

Publicado originalmente no BLOG DO CINEMA

Referência


7 prisioneiros

Brasil, 2021, 94 minutos

Direção e roteiro: Alexandre Moratto

Elenco: Christian Malheiros, Rodrigo Santoro, Bruno Rocha, Vitor Julian, Lucas Oranmian, Cecília Homem de Mello, Dirce Thomaz.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES