Lei e Leviatã – resgatando o Estado administrativo

Eduardo Berliner, Sem título, 2018
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Por RAFAEL VALIM & WALFRIDO WARDE*

Prefácio ao livro recém-editado de Cass Sunstein e Adrian Vermeule

Esta obra, de autoria de dois destacados juristas estadunidenses, é um provocativo convite à reflexão sobre os desafios do Estado contemporâneo. Não se trata de uma simplista apologia ao Estado administrativo, senão que uma bem elaborada construção teórica sobre o fundamento e os limites das agências administrativas encarregadas de satisfazer, segundo critérios técnicos, heterogêneas e cambiantes necessidades coletivas.

Malgrado a obra tenha como ponto de partida o sistema jurídico estadunidense, dela emergem, para proveito de todo e qualquer leitor, clássicos debates do direito público e da ciência política, como, por exemplo, os riscos da discricionariedade administrativa e a dicotomia entre burocracia e política.

Para o público brasileiro o livro se reveste de especial interesse, na medida em que dialoga com temas de grande relevância para o debate público nacional. Seja-nos permitido apontar alguns exemplos.

O “Estado administrativo” de que nos falam os professores Cass Sunstein e Adrian Vermeule foi a inspiração do movimento de “agencificação” do Direito administrativo brasileiro, no contexto da reforma do Estado nos anos noventa do século passado. À época, mediante um discurso colonizado, as agências reguladoras eram “vendidas” acriticamente, como algo inelutável, uma panaceia capaz de curar todos os males da administração pública brasileira, e os seus críticos eram, naturalmente, qualificados como “dinossauros”.

Sem ingressar nas vantagens e desvantagens do modelo de agências, é curioso observar como nos Estados Unidos ainda se trava uma batalha de legitimação dessas entidades. Diferentemente do que se dizia e ainda se diz no Brasil, as agências são um modelo em disputa nos Estados Unidos e despertam as mesmas preocupações em ambos os países, sobretudo no que respeita à tensão entre o saber técnico e a vontade democrática. Aliás, é exatamente para responder os críticos e legitimá-las que os autores publicaram a obra que ora temos a honra de prefaciar.

Outro aspecto do livro sumamente importante para o Brasil é o resgate da teoria de Lon Fuller sobre a moralidade do Direito, cuja obra clássica, intitulada The morality of law,[1] sequer está traduzida para o português. Segundo o eminente professor de Harvard, o fenômeno jurídico estaria sujeito a uma moralidade “procedimental”. Uma moralidade interna, pois, ao Direito, que se traduziria nos seguintes princípios: generalidade; publicidade; irretroatividade; inteligibilidade; consistência; praticabilidade; estabilidade; e congruência.

Cass Sunstein e Adrian Vermeule se valem da teoria de Lon Fuller para introduzir a ideia de moralidade do direito administrativo, por meio da qual se fundamentaria, mas, ao mesmo tempo, se limitaria a atuação das agências administrativas. Nas palavras dos autores, “os princípios da moralidade do direito administrativo fortalecem e restringem o Estado administrativo”. Seria uma forma de aplacar as preocupações dos críticos em relação ao exercício de competências administrativas discricionárias por burocratas.

A Constituição brasileira consagrou explicitamente a moralidade como um princípio constitucional da Administração Pública (art. 37, caput), sob influência da doutrina jus administrativa brasileira que, por sua vez, buscou inspiração na doutrina francesa sobre o assunto, cujo precursor é Maurice Hauriou. É amplamente conhecida, entretanto, a problemática instaurada por esse princípio no direito brasileiro. Não raras vezes, à luz de uma suposta “norma de moral social”, a moralidade administrativa é usada para proibir ou punir situações que não estavam previstas em lei, promovendo assim uma verdadeira ruptura da legalidade.

A moralidade do direito de Lon Fuller, como nos esclarece Cass Suntein e Adrian Vermeule, não enfraquece a legalidade, mas sim a reforça, por isso nos parece tão rico esse confronto de visões sobre a moralidade interna do direito.

Resta-nos assinalar um último traço saliente desta extraordinária obra. Na atual quadra, em que, de um lado, verifica-se a ascensão de um populismo de extrema-direita – que nega a ciência e, consequentemente, a chamada “discricionariedade técnica – e, de outro, uma disfuncional expansão do Poder Judiciário – que esvazia a discricionariedade dos agentes políticos –, é fundamental revisitar o tema da discricionariedade administrativa. Os autores deste livro proporcionam preciosos elementos para tanto.

*Rafael Valim, advogado, é doutor em direito administrativo pela PUC-SP, onde lecionou de 2015 a 2018. Autor, entre outros livros, de Lawfare: uma introdução (com Cristiano Zanin e Valeska Zanin Martins) (Contracorrente).

*Walfrido Warde, advogado, é doutor em direito comercial pela USP. Autor, entre outros livros, de O espetáculo da corrupção (Leya).

 

Referência


Cass R. Sunstein & Adrian Vermeule. Lei e Leviatã: resgatando o Estado administrativo. Tradução: Nathalia França. São Paulo, Contracorrente, 2021, 180 págs.

 

Nota


[1] Lon L. Fuller. The morality of law. 2ª ed. New Haven: Yale University Press, 1969.

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