Por CLÁUDIO GALLO*
É o Ocidente que precisa de uma revolução “colorida”; não o Oriente
Como diz a velha piada, os séculos do capitalismo estão contados. Todo mundo já sabe que as boas previsões milenaristas de Marx não parecem ter dado muito certo: o novo homem não veio, e ainda estamos aqui, em um mundo dividido entre os que têm e os que não têm, para usar a expressão com que Hemingway intitulou seu romance de maior cunho social [To Have and Have Not, 1937]. No entanto, as contradições da economia ocidental estão de fato mais candentes do que nunca. Veja-se o recente Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial de Davos. Ele se baseia nas opiniões de mais de 12.000 líderes nacionais. Dois anos após o começo da pandemia, os riscos de médio prazo mais percebidos por eles para suas sociedades são: “erosão da coesão social”, “crise de subsistência” e “deterioração da saúde mental”.
Notadamente, “a erosão da coesão social é uma das principais ameaças de curto prazo em 31 países, incluindo Argentina, França, Alemanha, México e África do Sul do G20”. A longo prazo, espreita a ameaça da “migração forçada”. A maioria dos entrevistados considera os esforços para conter ou regular a migração e as ondas de refugiados como absolutamente inconsistentes.
Pode-se argumentar que Davos é algo que diz respeito a “homens ricos chegando em aviões particulares, para discutir mudanças climáticas, sexismo e desigualdade” e que “a maioria de suas previsões são inúteis”, como escreveu Simon Kuper no jornal Financial Times. Mas a realidade de que nossas sociedades estão se desmoronando diante de nossos olhos parece hoje difícil de negar. Por outro lado, o paradoxo de Davos é se as próprias elites que criaram esses problemas seriam capazes de – ou sequer desejariam – resolvê-los.
O relatório do Fórum Econômico Mundial sustenta que até 2030 mais 51 milhões de pessoas, em comparação com os níveis pré-pandemia, devem viver em extrema pobreza. “As disparidades de renda, exacerbadas por uma recuperação econômica desigual, aumentam os riscos de polarização e de ressentimento no interior das sociedades”. Nos Estados Unidos, essas divisões estão assumindo uma forma singular e disruptiva. Lá, uma pesquisa recente revelou que a “divisão no país” é a principal preocupação dos eleitores: e eles esperam que ela piore em 2022. O ataque ao Capitólio, em janeiro de 2021, foi um sinal evidente da instabilidade que os riscos de polarização política podem produzir.
Alguém pode chamar isso de crise da democracia. O sistema ocidental, amplamente simbólico e confinado ao momento teatral das urnas, não parece mais capaz de responder aos receios populares. O impacto da migração nos países ocidentais está fadado a crescer dramaticamente. Os gurus de Davos não se mostram tranquilizadores. Nos anos que se seguirão, “uma recuperação em frentes díspares (bifurcated recovery) [ricos mais ricos e pobres mais pobres] provavelmente provocará um aumento da migração econômica. Ao mesmo tempo, o agravamento do colapso climático aliado ao incremento da instabilidade política, assim como a fragilidade do Estado e os conflitos civis, provavelmente aumentarão ainda mais o número de refugiados”.
Enquanto no Ocidente as pessoas comuns recebiam o reforço da vacina contra a covid-19, a fortuna dos super-ricos se reforçava com as condições criadas pelo mesmo vírus. Essa e a conclusão do recente relatório da Oxfam A desigualdade mata: a ação sem paralelo necessária para combater a desigualdade sem precedentes na esteira da covid-19. “Um novo bilionário surgiu a cada 26 horas desde o início da pandemia” – diz o documento. “Os dez homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas, enquanto mais de 160 milhões de pessoas foram lançadas na pobreza. Enquanto isso, aproximadamente 17 milhões de pessoas morreram de covid-19 – uma escala de perda que não se via desde a Segunda Guerra Mundial. Todos esses elementos compõem um mesmo mal-estar mais profundo. É a desigualdade que está dilacerando nossas sociedades”.
Em todos os lugares, a mesma música triste. A percepção da decadência social se confronta ora com um desespero sutil ora com a mesma velha canção do coro neoliberal: “não há alternativa”. No entanto, como disse Noam Chomsky, em uma entrevista de 2021 na revista Jacobin, o mundo corporativo está “correndo com medo”. “Eles estão preocupados com o que chamam de ‘riscos reputacionais’”, e isso significa que “os camponeses estão chegando com seus forcados”. Todo o mundo corporativo – de Davos à Business Roundtable – é percorrido pelo debate sobre “como “confessar ao público que fizemos as coisas erradas. Não prestamos atenção suficiente às partes interessadas, à força de trabalho e à comunidade, e agora nos demos conta de nossos erros. Agora temos que nos tornar aquilo que na década de 1950 era chamado de ‘corporações com alma’, realmente dedicadas ao bem comum”.
De fato, o mundo corporativo parece precisar de uma gigantesca nova campanha global de relações públicas. A Economia Verde está pronta para ser tão apenas mais um exemplo de mercantilização de todos os aspectos da vida, e não o início de uma era de negócios mais humanos. A grande corrida rumo à nova fronteira automotiva elétrica não se destina a reduzir de fato a poluição global, mas apenas a abrir um novo mercado com muitas questões ambientais não resolvidas. Um resultado ridículo dessa onda neoliberal de “lavar de verde” [greenwashing] são os planos europeus de permitir que o gás e a energia nuclear sejam rotulados como investimentos “verdes”. Pode-se ver aqui, em ação, a crise das democracias ocidentais: em vez de enfrentar os desafios, elas mudam o significado das palavras.
Não é surpresa que o Edelman Trust Barometer 2022 tenha se deparado com um mundo “enredado em um círculo vicioso de desconfiança, alimentado por uma crescente falta de fé na mídia e no governo. Por meio da desinformação e do divisionismo, essas duas instituições estão alimentando o ciclo e o explorando para ganhos comerciais e políticos”.
O Barômetro Edelman vem há anos fazendo sondagens nas diversas nações do mundo sobre a confiança nos seus governos, mídia, empresas e ONGs. Hoje, ele diz que “a raiva está vencendo nos cliques”, e criando uma “espiral de desconfiança sobre governo e média”.
“O público tornou-se amplamente consciente de que a mídia não joga limpo”. “Nós realmente estamos diante de um colapso de confiança nas democracias”, disse Richard Edelman à Reuters, cujo grupo de comunicação publicou o levantamento com mais de 36.000 entrevistados em 28 países, entre 1º e 24 de novembro do ano passado. Os maiores perdedores de confiança frente ao ano anterior foram as instituições da Alemanha, com queda de 7 pontos, passando para o 46º lugar da lista, da Austrália no 53º (-6), da Holanda no 57º (-6), da Coreia do Sul no 42º (-5) e dos Estados Unidos no 43º (-5). A Rússia leva os louros da nação mais cética. O fato mesmo de países não necessariamente famosos por sua democracia, como China, Emirados Árabes Unidos e Tailândia, estarem no topo do índice de confiança pode indicar que seus cidadãos não chegam a compartilhar a fé nos ideais da democracia ocidental.
O próprio relatório de Davos parece acertadamente destacar que nosso mundo precisa mais do que nunca de uma “governança global e uma mitigação internacional de riscos mais eficaz”, não apenas para a ameaça da Covid, mas também para lidar com o “confronto geoeconômico”. Os números, infelizmente, estão contando uma história diferente.
Os personagens principais do jogo global mostram-se, antes de mais nada, despreparados para dar conta das contradições do mundo vindouro. Governos débeis de países europeus divididos enfrentam crises geopolíticas, como a ucraniana, encurralados pelo velho esquema imperial norte-americano, inteiramente contrário aos seus próprios interesses nacionais. É o Ocidente que precisa de uma revolução “colorida”; não o Oriente.
*Cláudio Gallo, jornalista, é editor de cultura do jornal La Stampa (Turim).
Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.
Publicado originalmente na Strategic Culture Foundation.