Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
Não há como falar de conciliação nacional sem passar antes pela punição dos crimes de Jair Bolsonaro e seus aliados
Segundo alguns especialistas, a chamada Síndrome de Estocolmo, condição na qual a vítima de violência física e/ ou emocional desenvolve reações e relações de afeto para com o seu agressor, pode ser entendida como um mecanismo de defesa psicológica em situações de risco, tensão e dano. Mecanismo pelo qual a vítima tenta, inconscientemente, transformar a gravidade da sua circunstância, tenta minimizar imaginariamente os perigos evidentes e os danos reais de situações de assédio, pressão e agressão.
Com Freud, a psicanálise estudou os mecanismos de defesa do ego, o papel da fantasia na vida e na saúde psíquicas, as disjunções interessadas nas representações de si e do mundo dos sujeitos. Ver a realidade e a sua realidade pessoal tais como são de fato é, para o ser humano, um constante desafio. Um repto “existencial”, algo que faz parte da situação e constituição vital de todos nós.
A vida requer de nós coragem, dizia a sabedoria do jagunço-filósofo retratado por Guimarães Rosa. E a coragem é conquista constante nos desafios impostos pela vida e naqueles autoimpostos como, por exemplo, o pacto com o demônio buscado pelo jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas para transformar sua condição de subalterno nas lidas e desafios inevitáveis do sistema de vida do qual fazia parte, a jagunçagem, com seus valores particulares, recompensas e custos, demandas e imposições próprias.
A vitória na guerra jagunça, no caso de Riobaldo, se desdobrou na vitória subsequente contra o demônio ele mesmo, na medida em que o antigo jagunço se desfez, ao menos em seu cotidiano de sitiante retirado da guerra, de sua crença nas trocas com o rei das trevas. De forma ambígua, entre a crença e a descrença narradas, Riobaldo livra-se por aposentadoria do pacto demoníaco como da vida passada de violências.
Riobaldo conheceu a maldade humana de fato na violência atuada e vivida das guerras e dos afrontamentos. Maldade indubitável em contraste à existência e atualidade duvidosas do poder do rei das sombras. Podemos dizer que o jagunço-filósofo da narrativa de Guimarães Rosa é um realista, alguém que conheceu a complexidade de sua condição, que assumiu plenamente suas escolhas na guerra e, tanto quanto possível, dentro da condição sertaneja e guerreira, na amizade e no amor por Diadorim, símbolo hermafrodita da convergência na contenda entre o masculino e o feminino, algo como uma representação da cisão heraclitiana do real que é unidade dos opostos, junção do dividido por meio do conflito. A guerra, o conflito, a luta é a unidade possível do diverso, e é também o princípio e a origem de todas as coisas, dizia Heráclito.
Aqui é importante salientar que Riobaldo, enquanto guerreiro assumido e experimentado, conhecia seus inimigos, não lhe cabia ter quaisquer dúvidas ou ilusões a respeito daqueles que ele combatia. O mesmo não parece suceder na conturbada vida política no Brasil hoje. Certo é que a desorientação é condição geral dos sujeitos e dos grupos humanos (classes, nacionalidades, etc.) na atualidade do mundo neoliberal em crise, algo que podemos reconhecer como fato, mas que não podemos evidentemente justificar. Pois o que está em causa aqui e agora não é a nossa autorrepresentação, o narcisismo cotidiano de todos nós, o “amor-próprio” como tal, mas a eficácia das nossas ideias e ações na realidade dos conflitos da vida humana e do conflito maior que hoje condiciona nossas vidas em suas várias dimensões individuais e coletivas, isto é, o conflito que opõe, de um lado a manutenção das atuais estruturas econômicas e políticas excludentes de poder global e do outro, literalmente, a sobrevivência da civilização, com todos as suas questões, e mesmo, na longa duração relativa, a sobrevivência da espécie humana no chamado período antropoceno.
A sociedade capitalista globalizada parece ter chegado ao ponto de confundir, numa mesma perspectiva mental e atividade material, a reprodução social vital e a destruição das condições básicas da vida planetária. Tal sociedade pode ser e já foi caracterizada, entre outras formulações, como autofágica, esquizofrênica, cega e irracional. Que os indivíduos sejam afetados nas suas representações e autorrepresentações em tal contexto, não é de se estranhar.
Mas é de se estranhar de fato que o mesmo ocorra com os que chamam para si as responsabilidades político-pedagógicas de salvaguarda e transformação radical da sociedade humana pelos valores da inteligência e da liberdade, contra o obscurantismo, a espoliação, a violência, a opressão, contra a pulsão de morte banalizada.
Recentemente, e reincidentemente, o senador Jacques Wagner, líder do PT, defendeu publicamente o general Villas Boas,[1] que teve atuação destacada no golpe de 2016 e que, salvo engano, continua como representante do pensamento obscurantista e antidemocrático da cúpula das Forças Armadas como, ao mesmo tempo, herdeiro e órfão da ditadura empresarial-militar de 1964 e da conveniente ideologia jurássica do “anticomunismo” genérico da Guerra Fria do século XX.
O senador invoca a cordialidade de relações pessoais com o general para defendê-lo do… do quê, exatamente? Dos próprios atos e pronunciamentos do militar a favor do golpe e do regime golpista: a culpa é de Jair Bolsonaro, afirma o parlamentar, não do general! Como se Jair Bolsonaro presidente e seus apoiadores militares em cargos de governo e na burocracia estatal nada tivessem a ver entre si! Se o senador Jacques Wagner não é ingênuo, deve acreditar que todos somos.
A cordialidade é um princípio das relações humanas que devemos sem dúvida cultivar. Não desprezamos a cordialidade: ela é parte do éthos, do conjunto de hábitos e normas da cultura brasileira, presente na cultura popular de maneira direta, e não apenas mera representação conciliadora e mistificadora das relações entre as classes.
Mas as ações e opiniões do general nada, absolutamente nada têm de cordial na vida brasileira. A cordialidade do general para com o senador petista termina exatamente onde começa o poder ditatorial secundado pelos militares como projeto para o país. A ditadura almejada pelos reacionários brasileiros e prometida por Bolsonaro, de modo algum premiaria a cordialidade e generosidade pessoal do senador Jacques Wagner, bem ao contrário.
No mesmo diapasão, o deputado federal petista Washington Quaquá publicou uma foto abraçado ao bolsonarista general Eduardo Pazuello louvando a cordialidade pessoal do general num encontro oficial de trabalho.[2] “Honi soit qui mal y pense”, declara preventivamente o deputado e nos oferece generosamente sua justificativa para a foto de congratulações com o general de Jair Bolsonaro. Trata-se da “conciliação”, do interesse nacional, da democracia, e outras altissonantes ideias e argumentos, em suma, de nobres ideais que as pessoas de boa índole e mente aberta podem facilmente entender. Quem não quiser entender ou aceitar tão excelsas justificativas apenas demonstra limitações de compreensão sobre o que é “democracia”, sobre a atividade profissional clarividente da política de todos os dias, tal como a entende o parlamentar, e tantas evidências no mesmo sentido.
Que a boa vontade e as boas intenções unilaterais podem ser fontes de graves erros de avaliação e ação (ou inação) na conjuntura política é algo que a experiência recente nos ensina de modo bem mais claro que as justificativas do parlamentar. É preciso recordar aos representantes petistas o que foi o processo eleitoral recente e o jogo sujo de Jair Bolsonaro para tentar reeleger-se? Com Jair Bolsonaro no poder teríamos hoje generais gentis distribuindo abraços à oposição? É preciso lembrar que a direita e a extrema-direita neste momento estão vivas e de prontidão para novas oportunidades de alianças golpistas? Mesmo o nobre parlamentar conciliador pode entender isto, creio eu. Há os que confundem pensar dialeticamente, quer dizer, reconhecer a complexidade e o dinamismo incessante da realidade, como uma espécie de licença para a incoerência.
A verdadeira conciliação nacional, reconciliar o país consigo mesmo e com sua vocação de terra de seu próprio povo, é aquela que passa pela punição dos crimes de Jair Bolsonaro e seus aliados. A recusa em enfrentar e punir os torturadores fardados e seus mandantes no pós-ditadura militar nas últimas décadas do século passado, nos deixou enquanto país com a herança cruel da impunidade dos golpistas, de incentivo ao golpismo, de irresolução sobre o que somos finalmente como coletividade.
Na conjuntura presente vemos o Partido da Imprensa Golpista retomar suas práticas mentirosas e golpistas contra Lula e o PT, a Faria Lima fazer de conta que não teve nada a ver com Bolsonaro, o centrão e a extrema-direita, assim como os militares, em compasso de espera, de fato reorganizando-se para golpes futuros. O momento não pede “confraternização”, mas luta.
Grande Sertão: Veredas é uma história de aretê, da virtude guerreira de Riobaldo e sobretudo da astúcia pessoal do jagunço que vence os demônios da incerteza e da covardia na ação firme e direcionada de fazer prevalecer a justiça guerreira contra os que romperam as normas fundamentais da sociabilidade jagunça. Pois mesmo na sociedade destes homens violentos existem normas que definem limites, direitos e deveres. Os que violam tais normas contribuem para confundir todos os significados, embaralhar as razões da vida e da morte, verdadeira obra demoníaca do arbítrio e da falta de sentido.
*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
Notas
[1] O inacreditável perdão de Jaques Wagner ao general Villas Boas – Pedro Estevam da Rocha Pomar https://pagina13.org.br/o-inacreditavel-perdao-de-jaques-wagner-ao-general-villas-boas/
[2] Valter Pomar: Quaquá, de braço com o genocida Pazuello, “pisoteando o túmulo de mais de 450 mil mortos” https://www.viomundo.com.br/politica/valter-pomar-quaqua-de-braco-com-o-genocida-pazuello-pisoteando-o-tumulo-de-mais-de-450-mil-mortos.html
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