Uma pauta recuada

Imagem: ColeraAlegria
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Por LEO VINICIUS LIBERATO*

A ausência de vontade política de revogar o Novo Ensino Médio por Lula-Camilo, mostra que se trata de uma política que não é imposta externamente ao PT

1.

Se há uma obra de ficção icônica sobre efeitos sociais do lulismo, é o filme Que horas ela volta? de Anna Muylaert. Uma representação da ampliada oportunidade de mobilidade social à juventude proletária e subproletária. A filha da empregada passa no vestibular, o filho da patroa não.

Golpe em 2016: teto de gastos, reforma do ensino médio, depois reforma trabalhista e toda uma “Ponte para o futuro” coerente com o objetivo de rebaixamento do custo da força de trabalho e o aumento da taxa de lucro. A ponte para a mais-valia absoluta.

No segundo semestre de 2016 ocorre no Brasil a segunda maior onda de ocupações de escolas da história da humanidade: contra o Teto de gastos e a Reforma do ensino médio. O movimento foi derrotado, em parte pelas ocupações ficarem concentradas em praticamente um estado (Paraná), em parte porque a agenda ultraliberal de mais-valia absoluta vinha empoderada por um golpe de Estado recém dado; uma incrível demonstração de hegemonia e força das classes capitalistas.

Lula volta, estamos em 2023. O Ministério da Educação fica com Camilo Santana do PT. Lula não poupa críticas ao golpe de 2016 (que ele chama muito bem por golpe mesmo) e à Ponte para o futuro. E aqui é preciso abrir um parêntese. Se você quer saber a verdade, ou a essência, sobre um partido no governo, use um método em que as variáveis estejam controladas. Analise as situações em que o cargo está com um membro do partido e os objetos de decisão do ocupante do cargo sofram baixa ou desprezível pressão de grupos a princípio antagônicos à ideologia do partido.

No caso do governo Lula, dos ministérios que estão com próprio PT, o Ministério da Fazenda sofre pressão imensa do poder de fato: as classes capitalistas. No extremo oposto, o Ministério da Gestão não enfrenta diretamente o interesse das classes capitalistas. O Ministério da Educação está longe de ser um dos Ministérios com objetos de decisão que sofram pressão mais forte de frações das classes capitalistas. A revogação do Novo Ensino Médio não traria desgaste significativo ao governo com essas classes. Traria insatisfação apenas para frações interessadas nos negócios possibilitados pela reforma.

Nesses termos a ausência de vontade política de revogar o Novo Ensino Médio por Lula-Camilo, mostra que se trata de uma política que não é imposta externamente ao PT. Lula-Camilo a abraçam. Camilo Santana mostra uma verdade sobre o PT: negociantes (businessmen) fazem parte dos seus altos quadros. Businessmen não são agentes externos que fazem o partido se conformar, são agentes também internos e de peso nas esferas de poder do partido.

O apreço de Camilo Santana, e de Lula por tabela, a esse business, é tal a ponto de fazerem letra morta da dita “debolsonarização” do governo. Para manterem os quadros do business, isto é, os gestores capitalistas que servem a qualquer partido em qualquer tempo, Lula-Camilo rasgam a cartilha da desbolsonarização já na segunda página. Foi o caso da manutenção do Coordenador de Políticas do Ensino Médio do governo Bolsonaro. A Ponte para o futuro, assim, era de fato a ponte que ligaria o governo Temer aos futuros governos Bolsonaro e Lula.

Não faltam relatos, estudos e comunicações de especialistas, estudantes e professores sobre as consequências nefastas do Novo Ensino Médio. A vontade política do governo do Partido dos Trabalhadores impõe aos professores uma maior carga de trabalho, com aulas fora de suas formações e perda de sentido no trabalho, ampliando os fatores de risco psicossociais de uma categoria já massacrada.

Já os estudantes das escolas públicas estão angustiados e desesperados, vendo suas expectativas de futuro roubadas. Sequer lhes é permitido sonhar com uma mobilidade social via escolarização. Sequer as meias-verdades do liberalismo lhes são oferecidas mais. Aprisionadas no presente pelos businessmen de todos os governos, da extrema direita à esquerda, o futuro só existe para as crianças da classe trabalhadora em outro lugar. Um lugar em que Camilos e Lemanns não existam…

Os negociantes de Temer, Bolsonaro e Lula vendem o futuro da juventude proletária. Itinerário formativo comprado pelo iFood, por exemplo. Evidentemente não para ensinar a andar de moto e usar o celular, já que se aprende isso fora da escola. O itinerário de um iFood obviamente é de conformação: formação de subjetividade dócil e acrítica ao trabalho em péssimas condições.

Os exemplos abundam de itinerários vistos como inúteis pelos estudantes e que ocupam as cargas horárias de disciplinas que eles precisariam aprender para o vestibular. E o fato de um governo e ministério do PT abraçar e defender uma política de ensino médio que reduz disciplinas que tendem a fomentar a capacidade crítica da realidade social, e no seu lugar dar espaço a cursos de sujeição à realidade neoliberal, como os ligados a empreendedorismo, financismo e que tais, mostra como o PT não está à altura do momento histórico.

Mais que isso, mostra como o papel de negociantes das classes capitalistas determina a ação do PT, em vez da sua ação ser determinada por uma última tentativa de frear e barrar a disseminação das subjetividades e ideologias que alimentam o neofascismo. Quando possui o poder de decidir sobre política pública educacional, o PT escolhe a que alimenta o fascismo. Faz tudo pelos negócios de hoje, mesmo que os negócios de hoje ajudem a destruir o próprio partido amanhã. Nos livros de história será uma marca imperdoável que o PT carregará. Num frágil interregno do fascismo, abraça uma política educacional que alimenta a própria base ideológica e subjetiva desse fascismo.

2.

A mobilização estudantil pela revogação da reforma do ensino médio em 2023, apesar da baixa intensidade e da forma ainda muito burocratizada, já nos deu uma lição de sociologia política. Pelo que vimos na imprensa, o governo suspendeu a continuidade de implementação do Novo Ensino Médio pelo desgaste resultante com uma base de apoio a Lula considerada não consolidada: os jovens. Pragmatismo político-eleitoral. O que significa que uma base de apoio consolidada possui menos capacidade de pressão e de interferir nas decisões do governo. São o gado. A definição política de gado é: aqueles que o governo/partido sabe que não importa o que faça continuarão apoiando/votando nele. E quando a alternativa do momento é o neofascismo, talvez se torne mais fácil ao PT manter um rebanho.

A consequência lógica disso: só é possível avançar uma agenda abaixo e à esquerda quando é posta concretamente a possibilidade de votar nulo nas próximas eleições. Quem não se coloca seriamente a possibilidade de votar nulo, se anula politicamente como “consolidado”, isto é, politicamente se torna gado. Essa é a lei da sociologia política que está comandando nossa real politik.

Só desconsolidando o “L” poderá haver luta consequente para construir um futuro no presente.

3.

A pauta de revogação do Novo Ensino Médio, por parte dos estudantes, é em si extremamente recuada. Reivindica-se o reestabelecimento do ensino escolar voltado ao vestibular. Ou seja, o reestabelecimento da conhecida possibilidade, que acaba sendo restrita a alguns indivíduos da classe trabalhadora, de se moverem nas escalas de rendimentos e social através da escolarização. Nada que coloque em questão os próprios valores desta sociedade e como ela se organiza. Mas o importante da perspectiva de transformação social não é o conteúdo do movimento, a reivindicação, mas a forma que o movimento pode tomar…

Algo que ficou muito evidente nas ocupações escolares que ocorreram principalmente em 2015 em São Paulo, mas também nas de 2016 pelo Brasil. Para ficar com o exemplo de 2015, o objetivo era impedir a chamada reorganização escolar do governo estadual. Uma pauta defensiva. Mas a forma que ganhou o movimento, no seu modo de organização e nas suas expressões de luta, constituiu novas relações sociais, baseadas em valores antagônicos aos que instituem a sociedade capitalista.

As ocupações rompiam com a hierarquia estabelecida nas escolas. Um processo de autogestão das escolas esteve em desenvolvimento, a partir dos estudantes e com envolvimento de parte da comunidade. O espaço da escola se tornou espaço de aprendizado e de atividades a partir do desejo dos estudantes, em relação com as possibilidades fornecidas pela comunidade apoiadora da luta.

Na dinâmica de atividades da escola ocupada, as relações de ensino-aprendizagem eram transformadas, apontando no limite para a utopia libertária de Ivan Illich de uma sociedade desescolarizada. Na escola ocupada e autogerida pelos estudantes o desejo – aquilo que não pode ser reduzido ao sistema de necessidades produzido pelo sistema de produção – sobredeterminava a necessidade de se tornar força de trabalho no mercado, entrando até mesmo em conflito aberto com ela. O credenciamento profissional ficou suspenso na revolução desescolarizante que se iniciou com as ocupações estudantis.

Os valores instituintes nessa autogestão negaram a própria existência humana como mercadoria. O desejo se impôs sobre o valor de troca do credenciamento profissional. Uma aprendizagem que não se preocupa com vestibular despontou, não como a regressão protoescravocrata do Novo Ensino Médio, mas como libertação humana da forma força de trabalho. É assim que uma luta pelo direito de aprender para o vestibular pode muito concretamente negar o próprio vestibular como instituição que só é concebível com a redução do estatuto de ser humano à força de trabalho. É através da forma das lutas e dos movimentos que se instituem novos valores e relações sociais.

Evidentemente, quando um processo de autogestão da classe trabalhadora ficar circunscrito a um setor, não se generalizando à sociedade, as transformações em termos de permanência de novos valores instituídos através das mudanças organizacionais e nas relações sociais, tendem a refluir. A revolução que começa nas escolas não se realiza e não se aprofunda se não for acompanhada pela revolução nos locais de trabalho que substituam globalmente o princípio da redução do ser humano à força de trabalho.

4.

Enquanto Lula continua depois de Temer e Bolsonaro a apagar a “fita” de Anna Muylaert, é a subversão imediata, libertadora no presente, que o desejo da juventude prepara. Uma parte do gado dirá que foi a CIA. Mas seu autor será a poesia do desejo que os businessmen não podem conter, e que o gado já não pode ver. Como diria o Baudrillard de 1973, trata-se da imediaticidade do desejo não exorcizado em uma libertação futura, mas exigido aqui e agora, também na sua pulsão de morte.

Tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão.

Que comece a festa dos teimosos desconsolidados. A festa da instantaneidade radical da contestação das finalidades. Que o espaço da escola sirva para um mundo sem negociantes, ou que não sirva para nada.

Everybody wants to get famous
But you just want to dance in a basement
You don’t care if anyone is watching
Just as long as you stay in motion
We put miles on these old jean jackets
Got caught up in the drunk conversations
But after the party, it’s me and you
After the party, it’s me and you

*Leo Vinicius Liberato é doutor em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


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