Engajamento e liberdade

Edvard Munch, Ciúmes,1896
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Por TIAGO FERRO e LUÍS AUGUSTO FISCHER*

Uma conversa sobre literatura contemporânea

1.

Luís Augusto Fischer

Uma das entradas menos óbvias num dos debates de fundo mais custosos de nosso tempo apareceu quase sem querer numa conversa pública que tivemos com o Tiago Ferro. Ocorreu num seminário de pós-graduação em Princeton, no semestre letivo de outono de 2023. O seminário tinha o título “Insurgent writings”, era promoção do Departamento de Espanhol e Português (SPO) e foi conduzido pelo Rodrigo Simon de Moraes e por mim.

Como Tiago Ferro está passando um ano aqui, como pesquisador visitante junto ao Brazil LAB e ao SPO, o convidamos para uma fala junto aos alunos. A ideia era falar sobre seus dois romances, O pai da menina morta e O seu terrível abraço.

Depoimento de autor sobre sua obra é daquelas coisas que precisam ser consideradas criticamente, como qualquer outra declaração, análise, memória, aliás: cum grano salis, segundo a frase latina, “com um grão de sal”, isto é, com certo tempero, certa diferença, certa reserva. Mas sempre tem interesse, desde que o autor seja uma pessoa interessante. Era o caso. Obra e autor valem a pena. Isso ficou claro desde o começo da conversa, e melhorou com as perguntas dos alunos.

A folhas tantas, certa pergunta levou Tiago Ferro e um caminho talvez inesperado de resposta. Não foi uma questão direta e clara sobre o tema custoso de nosso tempo anunciado na primeira frase. Tiago Ferro elaborou uma resposta que o levou à seguinte ideia: sendo ele um autor branco, de classe média, cisgênero, ele se deu conta claramente – as palavras aqui usadas são minhas, não dele – que não tinha, em sua biografia ou em sua trajetória, nenhum elemento imediatamente reconhecível como um drama, uma carência, uma reivindicação, uma necessidade de reparação. Não havia nele nada, portanto, que o colocasse na posição, ou no lugar de fala (para usar a expressão de nosso tempo) de uma literatura conectada com o que alguns chamam de “literatura identitária”.

Até aqui, nenhuma grande novidade, mas ela estava aparecendo, como a ponta da orelha de um drama para o narrador do conto “A cartomante”, uma das geniais criações de Machado de Assis. Encaminhando essa reflexão, Tiago arrematou a fala com uma inesperada conclusão: dadas aquelas condições, ele percebeu que desfrutava de uma imensa liberdade.

Liberdade, se lembro bem, significava concretamente não sentir o peso de precisar defender uma ideia, uma posição, por exemplo a necessidade de escrever um romance para evidenciar certa opressão de gênero, ou de classe, sobre determinado personagem, ou para reivindicar o valor da vida de determinada figura. (Mais uma vez, as palavras aqui são minhas, não do Tiago; espero estar sendo fiel ao contexto e ao momento.)

A equação foi logo registrada por mim: liberdade de criação tendo ao fundo o cenário de uma produção literária que, afinal de contas, é também uma literatura “engajada”. Nosso tempo tem visto a publicação, a edição e muitas vezes o sucesso de romances (fiquemos nesse gênero, embora o problema vá adiante dele) claramente engajados, ou talvez vistos como engajados, em certas causas, no Brasil e fora dele.

Grupos sociais amplos, como os afrodescendentes ou os descendentes de povos indígenas se veem retratados, suas experiências vitais são consideradas e registradas, estão presentes enfim em romances que são valorizados por esse engajamento, entre outros motivos. (Nos EUA os nomes para a literatura produzida nesses âmbitos são nítidos: African American literature e Native American literature). O mesmo poderá ser visto para narrativas ligadas ao mundo LGBT+ ou ligadas ao ponto de vista das mulheres.

No Brasil, o tópico social entra mais claramente em conta: há muitos escritores e escritoras que se apresentam como, e/ou são vistos como, a voz das periferias sociais. Nos EUA aparece menos essa designação e muito mais outra fatia da experiência atual, que no Brasil até aqui tem rendido pouco em matéria de livros públicos – a experiência dos imigrantes recentes.

O caso é que – preciso encerrar a primeira parte de nossa conversa – nunca tinha me ocorrido tão claramente associar a categoria já antiga da “literatura engajada”, que na minha geração histórica teve uma encarnação forte no tempo da luta contra a ditadura, talvez especialmente na poesia, com a atual literatura (simplifico bastante a questão para caber num adjetivo) identitária. E concluo dizendo: que inesperada e promissora entrada num debate altamente relevante em nosso tempo!

2.

Tiago Ferro

Recebi com entusiasmo a ideia do professor Luís Augusto Fischer de estabelecermos um debate com a intenção de publicação. Dito isto, não posso deixar de mencionar que há algo de evidentemente ridículo no fato de dois brasileiros interessados em literatura, que conhecem um a obra do outro, vivendo no mesmo momento na mesma cidade universitária de cerca de 30 mil habitantes da Costa Leste norte-americana, travarem um diálogo por e-mail! Talvez o frio congelante seja uma desculpa verossímil para a comunicação mediada por telas.

O fato é que me senti honrado que uma ideia minha lançada no calor de um debate (aliás, excelente, não só pelo nível dos professores, mas também dos alunos) tenha parecido mover o pensamento de um crítico experiente.

Me recordo bem de quando o assunto surgiu no encontro mencionado por Luís Augusto Fischer. Mas antes de tentar fazer a conversa andar, gostaria de promover uma pequena correção naquilo que teria sido a minha ideia. (É evidente que a precisão pode não estar do meu lado, mas a autoridade, neste caso, sim.)

Talvez seja mesmo um preciosismo, mas na “transcrição” da minha fala promovida pelo Luís Augusto Fischer, surgiu uma expressão que não faz parte do meu vocabulário: “literatura identitária”. Não que seja necessariamente imprecisa, mas de uns tempos para cá, o adjetivo “identitário” foi incorporado ao discurso da extrema direita para atacar pautas surgidas em torno da luta por diretos de minorias. Cabe registrar que parte da esquerda também usa o “identitário” para desqualificar, por outro ângulo, se não as causas, ao menos os seus discursos.

Esticando mais a corda, movimentos como o fundamentalismo islâmico, bem como outros pouco simpáticos às pautas ditas progressistas, também se organizam a partir do reconhecimento de traços que formem (ou criem) uma identidade. Isso para não mencionar a identidade mais presente e ao mesmo tempo mais bem camuflada da modernidade: a do branco.

Feito o reparo na palavrinha envenenada (ou justificado porque a evito), gostaria de refletir um pouco mais sobre a tal liberdade descoberta pela escrita autoficcional do homem branco. Ela surge justamente do desmascaramento daquilo que existe de altamente ideológico em qualquer projeção promovida por esse personagem (histórico ou ficcional). Caso tente estabelecer algum tipo de sentido histórico, soa o alarme do falso universal ou da branquitude. Portanto, trata-se de uma liberdade que implica também um bloqueio: é possível ser livre desde que se se mantenha na pura negatividade. “Não te engajarás!”, diz o mandamento.

Mesmo quando mimetiza o discurso de alguma minoria, ocupa espaço que não lhe pertence no debate. Portanto, a negatividade seria o traço fundamental dessa liberdade, caso não queira perpetuar visões históricas contaminadas por uma série de privilégios históricos ou atravessar fronteiras minadas.

Assim, se não estou enganado, e procurando ser fiel ao insight inicial, fora de qualquer grupo que pleiteie reparações históricas ou direitos, é possível produzir uma literatura com forte teor político, mas sem engajamento. (Descarto obviamente romances que promovam, sem ironia ou deslocamento, ideias políticas da extrema direita).

E aqui chegamos a um impasse. O que fazer com essa literatura política que não leva a lugar algum? Caso a resposta passe por um limite histórico, o que significa então engajamento hoje?

Confesso que devolvo o arquivo ao Luís Augusto Fischer com muita curiosidade pela sua resposta!

3.

Luís Augusto Fischer

Li o texto do Tiago Ferro e logo depois assisti ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, que entrevistou a atriz e escritora Fernanda Torres. Figura conhecida, global, ela foi convidada agora para falar de seu romance Fim, que vem de ser transformado em série pela Rede Globo.

(Não é o centro da conversa agora, mas anoto: sem ter lido o romance, fui tentar a série, e achei medonha. Não apenas pela total falta de verossimilhança de um mesmo ator cinquentão representar um personagem que transita, no enredo, entre os 20 e os 60 anos, mas porque é mais um caso de cariococentrismo deslavado, repisando uma mitologia Zona Sul: um grupo de amigos homens, com mulheres aparecendo como complemento, vai sendo visto ao longo de muitos anos, com suas mazelas e emoções, convergindo tudo na morte de um deles. Os elogios a esse enredo e a essa série me parecem mais um costume cultural do que uma apreciação forte).

Em mais de um momento, a Fernanda Torres foi instada a falar sobre esse tema que o Tiago Ferro e eu estamos cercando aqui. Uma das formulações possíveis para gente branca, cis e de classe confortável, como ela lá e nós aqui, saiu assim: o povo agora fala por si mesmo, como se vê no podcast do Mano Brown, que ela revelou ouvir para aprender; eles (significando o povo, os pobres, os negros) estão achados, e nós, os “brancos libertários”, é que estamos perdidos – e essa frase aqui transcrita é quase literalmente a fala dela. Brancos libertários, para ela, é gente como nós, que vem vindo desde o tempo da ditadura lutando por liberdade, no uso de drogas recreativas ou na encenação de peças, na vida civil como na vida privada.

Estamos perdidos, eles achados. A turma de entrevistadores vibrou junto com a entrevistada.

Num sentido elementar, digamos que a razão histórica, vista a coisa desde o ângulo dos tais brancos libertários, está com eles, o povo, que agora fala por si – eles, que não somos nós. Até algum tempo atrás, disse ela e eu concordo, quem falava pelo povo não provinha do povo, não era popular. Ela não lembrou as exceções praxe, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, nem evocou a longa e maravilhosa linhagem da canção popular que traz em si esse ponto de vista popular há muitas gerações.

E uma vez que nós, os brancos libertários, sabemos com clareza que a razão histórica está com esses novos atores culturais – ou esses velhos atores culturais que agora tomaram a palavra nos meios expressivos tradicionalmente ocupados por nós, como o romance, nosso tema aqui –, o que fazemos? E o que devemos fazer, pressupondo que a razão histórica está não mais conosco?

Me voltou à memória uma frase do José Martí, grande intelectual cubano que Fidel Castro e seus companheiros evocaram no tempo da revolução: “É impossível resistir à proa das ideias cujo tempo chegou”. Não vou me dar o trabalho de conferir no google se a frase era essa mesmo, porque mesmo imperfeita na evocação que faço ela ilustra essa percepção, que a Fernanda Torres expressou e o Tiago Ferro e eu de algum modo também temos: nós, brancos libertários, fizemos força para que todos tivessem a palavra, especialmente os mais fracos, os mais oprimidos, os mais privados de fala, que se traduzem concretamente como os negros, os indígenas, as populações tradicionais (que alguma vez se chamaram mestiços, mulatos, caboclos), as mulheres, as minorias oprimidas por razões de gênero, etc.

Pois essa hora chegou, inclusive no romance, gênero que nasceu vulgar, na placenta do jornalismo diário, e que foi nobilitado ao longo do século XIX para converter-se, no começo do século XX, em fetiche vanguardista, recuperando depois o fôlego para dedicar-se a rever criticamente a vida dos de baixo nos anos 1930, no Brasil e nos EUA, e depois servindo de veículo de toda uma nova rodada de interesse em muitos pontos do planeta, com, por exemplo, os Saramago, os Pahmuk, os Murakami da vida.

A Fernanda Torres não levou a reflexão para uma direção que nos interessa aqui, talvez porque seu romance, a julgar pela série (horrível), permaneceu num patamar crítico ao mesmo tempo desprovido dessa angústia de branco libertário que está perdido (a arquitetura narrativa e os personagens são velhos conhecidos da tradição das classes confortáveis da Zona Sul, como a obra dos Domingos de Oliveira da vida), e sem intenção de problematizar, por exemplo, a estrutura de classes da sociedade, a dominação cultural (no sentido de Pierre Bourdieu), nada disso.

O que não é o caso do Tiago, nem o meu. Nós não perdemos de vista a luta de classes, nem os condicionantes sociais que Bourdieu nos ajudou a distinguir na bruma da paisagem social.

Encerro essa rodada com uma evocação meio disparatada: vinte anos atrás, 2004, eu publiquei uma novela, chamada Quatro negros (L&PM). O livro foi bem recebido pela leitura, ganhou prêmio da APCA naquele ano, foi até mesmo festejado. Mas olha só o título, e agora olha cá para mim: naquele momento eu não seria chamado assim, mas eu sou esse branco libertário, um homem cis de classe confortável.

Naturalmente eu sabia que era branco e privilegiado socialmente; e resolvi dar esse título como uma manchete incômoda: ali eu conto a história de quatro pessoas negras, pela voz de um narrador presente na cena, uma figura de escritor bem sucedido que começa confessando que, passadas tantas histórias já contadas, ele se depara com uma que mereceria mais que todas ser contada, mas ele não sabe como. E por aí começa a contar.

Sim, é um truque banal: transformar o problema em assunto e até em método. A história que ali conto, no centro da novela, é largamente baseada numa história real, que ouvi da protagonista, uma mulher negra que havia sido dada pelos pais para ser criada por outra família, mas que, surpreendentemente para seus quatro ou cinco anos de idade, se recusou a viver nessa outra casa e retornou para a sua. E que se orgulhava de ter mantido unida uma família que a dispensara.

A novela não tem circulado mais: uns quatro anos atrás, um editor novo me perguntou se eu não queria fazer uma nova edição por sua jovem editora, e eu topei, saindo da L&PM. Por circunstâncias alheias à minha vontade, essa nova edição não saiu ainda, e eu estou ainda pensando no que fazer. O que ressalta é que esse jovem editor é negro, um intelectual muito bem formado, e a editora se dedica a publicar autores negros; eu seria publicado, ele disse, na cota para brancos. Achei boa a ideia e embarquei nessa canoa.

O que essa história sugere? Não sei bem. Como crítico e professor, eu trato da literatura contemporânea, incluindo aí aquela produzida por pessoas negras, porque não me parece razoável pensar que apenas pessoas negras possam abordar a literatura produzida por pessoas negras – como não seria razoável imaginar que uma pessoa negra não pudesse discutir Shakespeare, ou Cervantes, ou Kafka. Mas em minha curta história como autor de ficção, fiquei parado no meio do gesto. Por medo de ser cancelado?

Tiago, diz aí.

4.

Tiago Ferro

Acho graça da expressão involuntária que aparece dessa nova divisão do mundo proposta pela escritora e atriz Fernanda Torres: “achados e perdidos”.

Suas ideias me interessam, uma vez que sintetizam algo do que poderíamos chamar, não sem contradições, de pensamento branco engajado. Me parece que da “sacada” da entrevistada, seria preciso pensar o que significa pertencer ao grupo dos “perdidos”, sem jamais ter perdido a rede de proteção social muito bem armada (geração após geração) por amigos, familiares e conhecidos, que garante, para dizer o mínimo, uma vida confortável e estável, mesmo quando nem tudo sai como o planejado.

Não resta dúvida de que nos últimos anos a classe média perdeu certos sinais de status e parte da segurança financeira (o acionamento do botão de emergência fascista tem também a ver com isso), mas, invertendo a questão, podem os “achados” afirmar que se situam numa posição bem estabelecida e fixa na sociedade brasileira, graças ao acúmulo de algum capital cultural e simbólico? Basta formular a pergunta para conhecer a resposta… Há capitais e capitais, como talvez pudesse ter dito o Pierre Bourdieu mencionado pelo Fischer.

Mas gostaria de retomar a questão da liberdade no interior do romance, recuando um pouco no tempo na esperança de ganhar alguma perspectiva (ou fôlego) já que não tenho certeza do rumo desta reflexão.

Me parece que o surgimento de uma nova sensibilidade de leitura encurtou demasiadamente a distância entre autor e narrador. Desapareceu a diferença da parte de responsabilidade (moral?) que cabe a cada um dos dois. A difícil verdade da literatura já não mais espanta, tornou-se transparente.

Mário de Andrade, num verso feliz e batido, afirmou: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”. Já o pesquisador e professor colombiano Jeronimo Pizarro mapeou 136 “autores fictícios” assinando textos de Fernando Pessoa, em bela edição publicada pela Tinta da China portuguesa. E ninguém cometeria o disparate de colocar nas costas de Machado de Assis a falta de caráter (aqui não no sentido macunaímico) de Brás Cubas. São experiências literárias de outro momento histórico, evidentemente.

No entanto, existe hoje no interior de movimentos negros e periféricos um esforço de releitura da obra e da biografia do nosso maior autor. Surgem o “Machado do morro”, o “Machado da quebrada” etc. Esse esforço público e militante impulsiona publicações importantes que buscam a questão racial no tecido da obra, algo que a voga marxista enquadrou nos esquemas da luta de classes e dos movimentos mundiais do capitalismo, deixando para outro dia a discussão do racismo. Eram tempos de grandes esperanças (e na sequência de grandes desilusões) do movimento terceiro mundista. Desenvolvendo o país, a “questão social” se resolveria de uma vez por todas, e para todos.

Mas sempre que Machado é enquadrado em algum esquema, como Luís Augusto Fischer sabe melhor que eu, o autor costuma puxar o tapete de ideologias aguerridas, seja lá de qual natureza. Historicamente deixou a crítica em maus lençóis, e muitas vezes revelou mais sobre quem se aproxima de sua obra, e portanto do momento do pensamento social, do que sobre a obra em si. Já foi lido como medalhão da nacionalidade, autor engajado com o progresso, sábio universal e também como crítico ácido da sociedade em que calhou viver.

Não sei onde o velho-novo Machado nos leva, mas quando li minha ideia que disparou esse diálogo na pena do professor Luís Augusto Fischer, compreendi que a tal liberdade do homem branco, livre dos compromissos com as causas das minorias, e sem as devidas salvaguardas da negatividade, abre as portas do inferno fascista, ou algo que o valha. A liberdade irresponsável de fazer o que bem lhe der na telha, como fazia Brás Cubas. Ou do bêbado em Quincas Borba que acende o charuto nas labaredas de um casebre em chamas, pouco se importando com a proprietária desconsolada. Ou melhor, mais preocupado com a propriedade privada do que com o sofrimento humano. O velho capricho criminoso das elites brasileiras em diálogo com a ponta avançada do liberalismo, como bem decifrado pelo crítico Roberto Schwarz.

Estou relendo O caminho de Ida, do Ricardo Piglia, que trata, em chave romanceada, entre outras coisas, e tendo Princeton como pano de fundo, da vida de Ted Kaczynski, mais conhecido como Unabomber. O que me faz pensar que, se de um lado a liberdade sem qualquer compromisso em sociedade desigual pode dar no fascismo, a liberdade na pura negatividade flerta na ponta final com o terrorismo.

Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei falam em liberdade a torto e a direito. Afirmam que as pautas por reparações das minorias oprimem os brancos – no Brasil o identitarismo, nos Estados Unidos o woke, em ambos o “marxismo cultural”. Liberdade para eles tem a ver com o lado historicamente poderoso, o do homem branco, gozar livremente de sues poderes e prazeres, mesmo que às custas da vida de terceiros. Beba e dirija, seja racista, bata na mulher, atire no homem negro na porta da sua casa.

Ao extrapolar os limites da forma literária, e não sem certo receio, me aproximo de algum tipo de verdade incômoda para os progressistas (na falta de expressão melhor) como nós: eu, Luís Augusto Fischer e Fernanda Torres. Até que ponto estamos de fato do lado de mudanças reais? O quanto jogamos veladamente contra o surgimento de algo novo, mesmo que distantes dos extremos fascista e terrorista? Seria a conversa sobre literatura, cortina de fumaça para assuntos cabeludíssimos?

Penso no filme cubano de 1968 Memórias do subdesenvolvimento. E sinto muito por deixar o Luís Augusto Fischer neste ponto.

PS: Talvez os iPhones da vida escutem mesmo as nossas conversas. Ou, neste caso, leiam nossos textos ou pensamentos! Entrei no Instagram e fui presentado com um trecho crucial da entrevista da Fernanda Torres, quando ela diz que a extrema direita não gosta de arte, por isso avança contra – outro senso comum da esquerda, dessa vez não apenas da branca. Pelo bem da verossimilhança, para usar termo do Luís Augusto Fisher, seria interessante não desconsiderar que agro, sertanejo e igrejas evangélicas começam a forjar uma nova identidade brasileira, distante do morro carioca idealizado e cantado pela Zona Sul (mas também do rap do Mano Brown), com cultura e circuitos próprios. E isso para não falar no best seller Olavo de Carvalho e na produtora de áudio visual Brasil Paralelo (nunca um título serviu tão bem aos dois campos!). Meu juízo de gosto evidentemente pouco importa aqui, e provavelmente está próximo ao da Fernanda, mas se quisermos aprofundar o debate, é preciso mexer em questões incômodas no baú de achados e perdidos da realidade.

5.

Luís Augusto Fischer

O leitor não precisa saber, mas saberá que até aqui eu escrevo de manhã e envio para o Tiago, que escreve à tarde e me envia. Agora estou eu de novo aqui para encompridar essa conversa, tendo dormido com esse assunto – a certa hora acordei e pensei que devia anotar uma ideia que tinha me ocorrido para seguir nesta indagação sem destino certo.

E a ideia era a seguinte: anda rondando a minha cabeça uma hipótese de texto, de ensaio, sobre um punhado de escritores mais ou menos da minha idade (nasci em 1958, faço 66 por agora) cuja obra eu entusiasmado vi nascer e se afirmar. Lembro de sete (e já a consciência atual me lembra: sete homens, que creio se tenham na conta de brancos), mas quatro em especial: Rubens Figueiredo, carioca, mais Lourenço Mutarelli, Luiz Ruffato e Fernando Bonassi são os mais salientes, estes três habitantes de São Paulo (Luiz Ruffato é de Cataguazes, Minas) e não sei se por acaso com sobrenomes italianos, o que denota alguma herança de imigrantes pobres, duas, três, quatro gerações atrás; mas ao grupo posso agregar um pernambucano, Marcelino Freire, e dois gaúchos, Paulo Ribeiro e Altair Martins.

Na mesma geração cronológica, haverá nomes a acrescentar caso o foco seja menos específico do que aquele que eu vou apontar, mas eles ficam para depois. Estes seriam Paulo Lins, Marilene Felinto, talvez mesmo Conceição Evaristo (mais velha, mas com vida editorial pela mesma altura), e o mais jovem Ferréz.

O foco daqueles sete lá de cima: é gente na maioria de origem popular, em parte proletária mesmo, que chegou às letras sem facilidade, ou sem a mesma facilidade com que, por exemplo, cheguei eu, filho de professor e advogado. Nesse grupo há dois torneiros-mecânicos formados no SENAI, que só depois disso conseguiram enveredar pela literatura. Poderiam ser dois novos lulas, uma geração depois do Lula.

E o que é mais: esses sete não perderam de vista a experiência opressiva da vida das classes populares. Basta ler suas obras para ver a força, a energia que emana de seus enredos, das situações de luta social mais e menos consciente entremeada dos sonhos e correspondentes desilusões acerca de ascensão social. Quando começaram a publicar, entre os anos 1990 e a primeira década deste século, pintaram no horizonte da literatura brasileira uma forte novidade, em narrativas produzidas com grande requinte técnico e não menor inventividade. Dizendo de maneira simples para argumentar: era o mundo do trabalho, o mundo dos de baixo, das classes populares, ganhando o palco nobre do romance.

Mas nos últimos dez anos, mais ou menos, a notável novidade que eles trouxeram se eclipsou. Último marco do brilho dessa turma talvez tenha sido o vigoroso discurso feito pelo Luiz Ruffato, na abertura da homenagem ao Brasil na Feira de Frankfurt, 2013.

E se eclipsou não porque eles não tenham mais produzido, ou porque não tenham o que dizer: é que o centro do palco foi ocupado pelos outros citados. Também a vida das classes populares ocupa grande proporção da obra desses outros, Paulo Lins, Marilene, Conceição, Ferréz. Mas neles entram em cena outros elementos: não mais a vida de trabalhadores da indústria, mas a dos trabalhadores precarizados, sem nem a ilusão de ascensão social; e com não menor importância, a dimensão racial está no primeiro plano, igualmente.

Tem alguma simplificação até aqui, mas espero ter dado a ver essa passagem do protagonismo literário, que foi operário branco e passa a ser lúmpen negro. Se for justa a observação sociológica que faço, essa passagem ilustra, por um lado, a vitória da escola pública, elementar, secundária ou superior, onde puderam estudar talvez todos eles, dos dois grupos, e por outro um fim de um ciclo modernizador, que se expressa na atual desindustrialização da economia brasileira.

Esse segundo grupo lidera, com a presença imperiosa do Mano Brown e do rap em geral, a nova safra de escritores, passe o problemático termo por ora, identitários, negros e periféricos principalmente. (O registro da voz das mulheres, dos indígenas, e do mundo LGBT enquanto tal requereria outra descrição, que não sou capaz de fazer.)

Mas foi nesse percurso mais recente que se consolidou o que o Tiago Ferro mencionou, o encurtamento e até mesmo o apagamento da distância e da diferença entre autor e voz narrativa, entre o autor enquanto CPF e o autor enquanto conjunto de valores expressos no romance.

Apagamento que se expressa como “lugar de fala”, termo que tem mais de uma dimensão, da mais genérica e relativamente inofensiva, que requer a consciência explícita sobre a origem social, étnica, de gênero etc. da parte de quem fala e escreve, até a mais militante e agressiva, que vincula uma coisa e outra como necessárias – quem não é negro não teria lugar de fala para falar de pessoas negras, quem não é mulher não teria lugar de fala para criar personagens mulheres, etc.

Apagamento, vale lembrar também, contra o qual vozes importantes têm se apresentado, exemplarmente o Bernardo Carvalho, em artigos para a Folha de S. Paulo e nas entrevistas que concedeu a propósito de seu mais recente romance.

Eu fui longe, me espalhei para falar desse palpite que tive e ainda ficaram de fora outras coisas que queria comentar, tentando jogar a bola adiante para o Tiago. (Me vêm a cabeça casos da mesma geração, como o de Beatriz Bracher, autora de novelas notáveis, e aquele caso medonho de cancelamento do belíssimo filme de Daniela Thomas Vazante, de 2017. Poderia lembrar mais, o citado Bernardo Carvalho, o impressionante Edyr Augusto. Fazer enumerações é o caminho certo para esquecer nomes importantes. Vão minhas desculpas antecipadas.)

Uma das outras ideias é que a emergência do “lugar de fala”, em sua versão mais radical (e antidebate), coincide com o final de um século e meio de existência da moderna teoria da literatura, da teoria da literatura concebida como tal. Desde, sei lá, Taine talvez, passando pelos formalismos eslavos e anglo-saxões, pelos estruturalismos, assim como também pelas formulações de linhagem sociológica (hegeliana, marxista, frankfurtiana), a teoria da literatura se esforçou justamente para isolar a autoria em relação à obra. A obra deveria ser vista como relativamente autônoma, e nada da biografia do autor deveria entrar no horizonte da crítica.

Pois olha onde viemos parar.

Tiago, temo ter me perdido pela linha de fundo, como um ponteiro antigo que corresse mais que a bola, mas não realizasse o adequado cruzamento para a área.

6.

Tiago Ferro

Fecho essa série sem pretensão de concluir. Para isso, em vez de vestir a camiseta do centroavante e aproveitar a bola rolando, trago para o debate um zagueiro: Lilian Thuram. Campeão do mundo pela seleção francesa de 98, nascido na ilha de Guadalupe, o jogador negro aposentado do futebol publicou em 2020 Pensamento branco.

Já havia olhado de rabo de olho algumas vezes a lombada do livro na estante da biblioteca do Pedro Meira Monteiro, em cuja casa estou hospedado pelo tempo em que ele passa o seu período sabático no Brasil escrevendo sobre Machado de Assis. O título insistia em me atrair. Até que ontem, para minha sorte, enquanto Princeton atravessava uma noite sem energia elétrica por causa da chuva forte com vento, li a introdução sob a luz branca de uma lanterna de emergência.

A combinação de atleta profissional e reflexão sociológica e filosófica apurada parece esdrúxula. Não por preconceito, mas pelo tempo e dedicação que uma e outra atividade exigem, daí a pouca probabilidade de conciliá-las numa única encarnação. Bem, Thuram, além de parar o ataque brasileiro (em tudo sobrevalorizado) na final da Copa do Mundo de 1998, atua como ativista antirracista em diversas frentes, e juntou as duas bolas.

O livro tem caráter utópico: a contra-história do pensamento branco visa a construção de um horizonte comum, onde todos possam falar a mesma língua. Parece demais, mas é sincero. Para o nosso debate, interessa, por exemplo, que local de fala aparece como o reconhecimento de preconceitos que condicionam nossos pontos de vista, eliminado qualquer afirmação de objetividade. Aqui não há cancelamento nem a luta ombro a ombro por espaço na arena pública, mas perguntas mais amplas, como a identidade de cada um na História (a caixa alta é do autor).

A atual impossibilidade de objetividade num mundo em disputa, me fez pensar na entrevista com Bernardo Carvalho mencionada por Fischer. Sem voltar ao texto, me recordo que o romancista afirma que literatura deve incomodar, e que aquilo que consola e abraça (e seria, portanto, o grosso da produção atual, ou ao menos a parte que faz sucesso) é religião. A confiar no zagueirão francês, é preciso levar em consideração de onde fala Bernardo Carvalho para não escorregarmos para a conclusão melancólica do fim da literatura (quantos fins têm sido proclamados ultimamente! Parece haver um bom mercado para esse tipo de profecia apocalíptica). Basta aprofundar o argumento para dar de cara com seu travejamento ideológico: literatura de fato incomoda, mas também pode consolar e abraçar, e mais, pode até fazer rir! Ou as comédias de Shakespeare não são tão grandes quanto os seus dramas?

Em outro debate, e falando de um lugar completamente diferente, a nigeriana Chimamanda Adichie alerta para os ataques que assolam a literatura. Em artigo publicado em português pela revista Quatro Cinco Um, a autora chama a atenção para o risco da censura, mas também da autocensura promovida pelo medo de cancelamento pelas “tribos ideológicas” (a expressão é dela) e pelos subsequentes cálculos de mercado com a emergência da figura do “leitor sensível”. A grandeza da sua obra e da própria autora, a qual eu e Fischer tivemos o privilégio de assistir em sessão solene e lotada aqui em Princeton, parece desmentir qualquer possibilidade de a literatura desaparecer nos próximos anos.

Outro ponto importante de Thuram toca fundo em certa tradição crítica brasileira. Cito o autor: “Aquele que tem uma posição dominante sente-se de tal maneira fortalecido e seguro dos seus direitos, sempre no centro, sempre no seu lugar, que olha para si próprio e se comporta como sendo a norma” [destaque meu]. Centro e periferia formaram o motor da dialética histórica dessa tradição. Para esse grupo de intelectuais, havia um bloco de nações industrializadas chamado centro e o restante do mundo, periferia.

A falta de especificidade cobrou seu preço e com o apagar das luzes do terceiro mundismo, do desenvolvimentismo etc., ou seja, do salto em bloco e integrado, a formulação histórica perdeu força, e o país malformado acabou girando em falso. (Justiça seja feita que foi o último dos moicanos do grupo que encontrou esse fim de linha do país finalmente formado: deformado, evidentemente).

No entanto, tal tradição estaria muito bem equipada para pensar esse novo centro e periferia “proposto” em Pensamento branco, sendo centro os brancos e periferia os não brancos. Ou seja, onde parece haver esgotamento para certas experiências intelectuais (ou assim o dizem seus detratores e o próprio movimento das coisas), pode existir renovação e colaboração.

Dito isto, a literatura passa bem, e até mesmo a questionável falta de separação clara entre autor e narrador tem gerado excelentes obras. O Prêmio Nobel, termômetro e bússola da produção mundial, não por acaso concedeu o prêmio máximo à francesa Annie Ernaux, que faz escrupulosamente literatura de sua vida.

Historicizar é para poucos. O percurso da literatura brasileira dos anos 1990 até hoje proposto por Luís Augusto Fischer no bloco anterior vale um livro inteiro! É o afiado olhar bifronte para sociedade e literatura. E no fim, de forma geral, Luís Augusto Fischer nos deixa a lição (ou eu que a tomo por minha conta e risco): o passar dos anos é muito cruel com autores e autoras. Pouquíssimos aguentam firmes ao longo de décadas (que dirá séculos!).

E Proust, Woolf e Montaigne, assim como Chimamanda e Ernaux, são todos nossos contemporâneos.

Seguimos.

*Tiago Ferro é escritor, editor e ensaísta. Autor, entre outros livros, de O pai da menina morta (Todavia).

*Luís Augusto Fischer é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor, entre outros livros, de Duas formações, uma história: Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago Editorial). [https://amzn.to/3Sa2kEH]


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