Veredas do direito

Imagem: Pavel Danilyuk
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Por OLIVER WENDELL HOLMES JR.*

A incidência do poder público através da instrumentalidade dos tribunais

Quando estudamos Direito não estamos estudando um mistério, mas uma bem conhecida profissão. Estamos estudando o que queremos a fim de aparecer diante dos juízes, ou aconselhar pessoas de modo a deixá-las a salvo dos tribunais. A razão por que isso é uma profissão, porque as pessoas pagam advogados para argumentar a favor delas ou para lhes aconselhar é que, em sociedades como a nossa, o comando do poder público é confiado a juízes, em certos casos, e a totalidade do poder do Estado será empenhada, se necessário, para fazer cumprir seus julgamentos e decretos.

As pessoas querem saber sob que circunstâncias e até onde correrão o risco de irem contra o que é tão mais forte que elas, e, portanto, torna-se um negócio descobrir quando esse perigo deve ser temido. O objeto de nosso estudo é, por conseguinte, uma predição, a predição da incidência do poder público através da instrumentalidade dos tribunais.

Pode-se ver bem claramente que um homem mau tem tanta razão quanto um homem bom para desejar evitar um encontro com o poder público. Caso se queira saber a lei e nada mais além dela, deve-se vê-la como um homem mau, que só se preocupa com as consequências materiais que tal conhecimento lhe permite predizer, não como um homem bom, que encontra suas razões para conduzir-se, dentro ou fora da lei, nas sanções mais vagas da consciência.[i]

Os meios utilizados para o estudo são um corpo de relatórios, de tratados, e de estatutos, neste país[ii] ou na Inglaterra, remontando seiscentos anos no passado, e que em nossos dias cresce anualmente em centenas. Nessas folhas sibilinas espalham-se profecias do passado a respeito de casos sobre os quais cairá o machado. Estes são o que propriamente têm sido chamados os oráculos da lei. O significado mais importante e, praticamente, total de todo novo esforço legal é tornar essas profecias mais precisas, e generalizá-las num sistema conexo de ponta a ponta.

O processo é único, desde o enunciado de um caso pelo advogado, eliminando todos os elementos dramáticos que vestiam a história contada pelo cliente, e restringindo-se somente aos fatos de importância legal, até as análises finais e aos universais abstratos da jurisprudência teórica. A razão pela qual um advogado não menciona [aquelas particularidades] é que ele presume que o poder público agirá da mesma maneira quando o cliente estiver diante dele. Tornam-se mais fáceis de ser lembradas e de ser entendidas as profecias, se os ensinamentos das decisões do passado forem colocados em proposições gerais e reunidos em livros-texto, ou que os estatutos assumam uma forma geral.

Os direitos primários e os deveres com os quais a jurisprudência se ocupa novamente nada mais são do que profecias. Um dos efeitos maléficos da confusão entre ideias legais e ideias morais, sobre o que tenho alguma coisa a falar daqui a um momento, é que a teoria está apta para colocar a carroça adiante do cavalo, e considerar o direito e o dever como alguma coisa existindo à parte e independente das consequências de sua quebra, para a qual, certas sanções são posteriormente adicionadas. Mas, como tentarei mostrar, um assim chamado dever legal nada mais é senão uma predição de que se um homem faz ou omite certas coisas, será ele submetido, dessa ou daquela maneira, ao juízo do tribunal – e, portanto, de um direito legal.

O número de nossas predições, tendo sido elas generalizadas e reduzidas a um sistema, não é tão grande a ponto de não poderem ser manuseadas. Elas se apresentam como um corpo finito de dogmas que pode ser dominado dentro de um tempo razoável. Constitui-se num grande erro ficar-se apavorado com o número sempre crescente de relatos. Os relatos de certa jurisdição ao longo de uma geração reúnem em si, todo o corpo da lei, e o restabelece de um ponto de vista atual. Podemos reconstruir o corpus a partir deles, se tudo que veio anteriormente tiver sido queimado. O uso de relatos anteriores é frequentemente histórico, uso sobre o qual tenho alguma coisa a dizer antes de terminar.

Desejo, caso possa, apresentar alguns princípios primeiros para o estudo desse corpo de dogmas ou de predições sistematizadas que denominamos lei. Isto servirá para aqueles que desejem usá-lo como instrumento de trabalho permitindo-lhes profetizar por seu turno, levando o estudo a um ideal, desejo eu, que nosso direito ainda não alcançou.

A primeira coisa para o entendimento operacional do assunto é entendê-lo em seus limites, e devido a isto penso ser desejável desde o início apontar e desfazer uma confusão entre moralidade e lei, que algumas vezes atinge à altura de uma teoria consciente, e mais frequentemente e de maneira constante confunde ao nível das minúcias sem atingir o nível consciente. Muito simplesmente pode-se ver que um “homem mau”[iii] tem tanta razão quanto um bom para desejar evitar um encontro com o poder público, sendo, portanto, possível ver-se a importância prática da distinção entre moralidade e lei. Alguém que não se preocupa com uma regra ética criada e posta em prática por seus vizinhos, preocupa-se bastante em evitar ter que pagar alguma quantia e deseja escapar da cadeia, se puder.

Tomo como perfeitamente aceito que nenhum de meus ouvintes irá interpretar o que tenho a dizer como linguagem do cinismo. A lei é a testemunha e o depósito externo de nossa vida moral. Sua história é a história do desenvolvimento moral da raça. Sua prática, apesar das pilhérias populares, tende a produzir bons cidadãos e bons homens. Quando enfatizo a diferença entre lei e moral refiro-me ao simples fim da de aprender e entender a lei. Para tal propósito, deve-se dominar de modo definido suas marcas específicas, e é por causa disto que lhes peço que se imaginem como indiferentes a qualquer coisa outra ou maior.

Não digo que não haja um ponto de vista mais amplo a partir do qual a distinção entre lei e moral se torne secundária ou sem importância, como todas as distinções matemáticas se desvanecem na presença do infinito. Mas digo que a distinção é de primeira importância para o objeto que temos aqui a considerar – um estudo correto da lei e seu domínio, como um empreendimento dentro de limites bem compreendidos, um corpo de dogmas enclausurado entre linhas definidas. Acabo de mostrar a razão prática para dizer isso.

Se alguém quiser saber a lei e nada mais, deve encará-la como o homem mau, que só se preocupa com as consequências materiais que tal conhecimento lhe permite prever, e não como um homem bom que encontra razões para sua conduta, no interior ou fora da lei, nas vagas sanções da consciência. A importância teórica da distinção não é menor do que se o assunto fosse tratado corretamente. O direito está repleto de fraseologia proveniente da moral, e por pura força da linguagem continuamente nos convida a passar de um domínio a outro sem perceber, tendo certeza de que assim procedemos salvo se a fronteira entre ambos estiver constantemente diante de nossas mentes. A lei fala de direitos, deveres, malícia, intento, negligência e daí em diante, e nada é mais fácil ou comum no raciocínio legal do que tomar essas palavras em seu sentido moral, em algum estágio do argumento, e, desse modo, cair em uma falácia.

Por exemplo, quando falamos dos direitos do homem num sentido moral, queremos marcar os limites de interferência com a liberdade individual que pensamos estarem prescritos pela consciência, ou por nosso ideal, onde quer que seja alcançada. É, contudo, certo que várias leis foram impostas no passado, e provavelmente, algumas estão sendo impostas no momento presente, que são condenadas pela opinião mais esclarecida do tempo ou que passam os limites de interferência que muitas consciências estabeleceriam. Manifestamente, portanto, somente confusão de pensamento poderia resultar do fato de se assumir que os direitos do homem num sentido moral se equivalem aos direitos no sentido da Constituição e da lei.

Sem dúvida, casos simples e extremos podem ser colocados de leis imaginárias que o poder de impor estatutos não tentaria impor, mesmo na ausência de proibições constitucionais, porque a comunidade se rebelaria e lutaria contra; e isto fornece certa plausibilidade à proposição de que a lei, se não for parte da moralidade, é limitada por ela. Mas esse limite do poder não é co-extensivo com qualquer sistema moral. Em sua maior parte, ele se localiza longe dos limites de um tal sistema, e em alguns casos pode excedê-los, por razões decorrentes de hábitos de um povo em particular num tempo particular […][iv] Não se pode negar que estatutos errados possam ou sejam impostos, e não estaríamos todos concordes sobre quais seriam errados.

A confusão com a qual estou lidando cerca confessadamente as concepções legais. Tome-se a questão fundamental: O que constitui o direito? Encontrar-se-ão alguns autores de textos dizendo de que é alguma coisa diferente do que é decidido pelos tribunais de Massachusetts ou da Inglaterra, de que é um sistema de razão, de que é uma dedução a partir de princípios da ética ou axiomas admitidos, o que pode ou não coincidir com as decisões. Se for tomado o ponto de vista de nosso amigo, o homem mau, ver-se-á que ele pouco liga para axiomas ou deduções, mas quer efetivamente saber o que provavelmente farão de fato os tribunais de Massachusetts ou da Inglaterra. Eu mesmo sou muito mais dessa maneira de pensar. As profecias do que de fato farão os tribunais, e nada mais pretensioso do que isso, é o que entendo por direito.

Tome-se novamente uma noção que, compreendida popularmente, é a mais ampla que a lei contém – a noção de obrigação legal, à qual antes já me referi. Preenchemos a palavra com todo conteúdo que extraímos da moral. Mas o que ela quer dizer para o homem mau? Principalmente, e em primeiro lugar, uma profecia de que se ele fizer certas coisas, será submetido a consequências desagradáveis por meio da prisão ou do pagamento compulsório de alguma quantia monetária. Mas de seu ponto de vista, qual a diferença entre ser multado ou ser taxado em certa soma por ter feito alguma coisa? Que esse ponto de vista é o teste dos princípios legais, mostra-se pelas diversas discussões, que têm havido nos tribunais a respeito precisamente da questão se uma dada imposição estatutária é uma penalidade ou uma taxa. Da resposta à questão depende a decisão se a conduta é legalmente incorreta ou correta, e também se o homem está sob compulsão ou está livre […]

De minha parte, frequentemente ponho em dúvida se não seria um ganho, caso todas as palavras de importância moral pudessem ser banidas da lei, e fossem adotadas outras palavras que veiculassem ideias legais desprovidas de qualquer coloração decorrente de qualquer coisa estranha à lei. Soltaríamos o registro fóssil de um bom número de história e majestade provenientes de associações éticas, mas nos livrando de uma desnecessária confusão, ganharíamos muito em termos de clareza de nosso pensamento.

Isto basta quanto aos limites da lei. O próximo assunto de que desejo considerar é quais são as forças que determinam seu conteúdo e seu crescimento. Pode-se assumir com Hobbes, Bentham e Austin, que toda lei emana do soberano, mesmo quando os primeiros seres humanos que a enunciaram fossem juízes, ou pode-se pensar que a lei é a voz do Zeitgeist, ou o que se quiser. Tudo isso se equivale diante de meu presente propósito. Mesmo que cada decisão requeresse a sanção de um imperador com poder despótico e um caprichoso estado mental, estaríamos interessados, ainda tendo em vista uma predição, em descobrir alguma ordem, alguma explicação racional e algum princípio de crescimento para as leis que ele estabelecesse. Em todo sistema há tais explicações e princípios a serem descobertos. É com respeito a eles que surge uma segunda falácia, que me parece importante ser aqui exposta.

A falácia a que me refiro é a noção de que a única força atuante no desenvolvimento da lei é a lógica. No mais amplo sentido, com efeito, essa noção seria verdadeira. O postulado pelo qual pensamos a respeito do universo é que existe uma relação quantitativa fixa entre cada fenômeno e seus antecedentes e consequentes. Caso haja uma coisa tal como um fenômeno sem essas relações quantitativas fixas, tratar-se-á de um milagre. Tal fenômeno estaria fora da lei da causa e de efeito, e transcenderia nosso poder de pensamento, ou ao menos alguma coisa para a qual ou a partir da qual não poderíamos raciocinar.

A condição de nosso pensamento a respeito do universo é que ele é capaz de ser pensado racionalmente, ou, em outras palavras, que cada uma de suas partes é efeito e causa no mesmo sentido em que aquelas partes estão com relação com aquilo que nos é mais familiar. Deste modo, no sentido mais amplo, é verdade que a lei é um desenvolvimento lógico, como qualquer outra coisa. O perigo de que falo não é a admissão de que os princípios que governam outros fenômenos também governam a lei, mas a noção de que um dado sistema, o nosso, por exemplo, pode ser trabalhado tal como a matemática a partir de alguns axiomas gerais de conduta.

Este é o erro natural das escolas, mas nela não se confinam. Uma vez ouvi um eminentíssimo juiz dizer que ele nunca tomava uma decisão até que ele estivesse absolutamente seguro que ela estava certa. É por causa disso que o dissenso é frequentemente condenado, como se ele quisesse dizer simplesmente que um lado ou o outro não estava fazendo suas contas corretamente, e que se ambos fizessem um pouco mais de esforço, a concordância inevitavelmente surgiria.

Essa maneira de pensar é inteiramente natural. O treinamento dos advogados é um treinamento em lógica. Os processos de analogia, discriminação e dedução são aqueles nos quais eles se sentem mais à vontade. A linguagem da decisão judicial é principalmente a linguagem da lógica. E o método lógico, assim como a forma, satisfaz aquela necessidade de certeza e de repouso que se encontra em toda mente humana. Mas a certeza geralmente é ilusória, e o repouso não é o destino do homem. Por trás da forma lógica encontra-se um juízo a respeito do valor e da importância dos fundamentos legislativos que se encontram em competição, embora seja verdade que tal juízo seja frequentemente inarticulado e inconsciente, embora permaneça sendo a verdadeira raiz e nervo de todo o procedimento. É possível conferir-se forma lógica a qualquer conclusão. Pode-se sempre implicar uma condição a um contrato. Mas por que implicá-la?

Certamente isto é devido a alguma crença assim com à pratica da comunidade ou de uma classe, ou é devido a alguma opinião, talvez política. Em suma, devido a alguma atitude sobre uma matéria incapaz de uma medida quantitativa, e, portanto, não capaz de fundar conclusões lógicas exatas. Tais assuntos são, na realidade, campos de batalha onde não há meios para determinações que serão boas para sempre, e nas quais as decisões nada mais poderão fazer do que dar corpo à preferência a certo assunto em um dado tempo e em dado lugar. Não imaginamos quão ampla parte de nossa lei está aberta a reconsiderações a partir de uma leve mudança no hábito da mente pública. Nenhuma proposição concreta é auto-evidente, e não importa quanto estejamos prontos para aceitá-la, ninguém tem o direito de fazer o que quiser, mesmo que não interfira num igual direito de seus vizinhos […]

Há uma batalha dissimulada meio inconsciente quanto à questão da política legislativa e se alguém pensar que ela pode ser estabelecida dedutivamente, ou de uma vez por todas, somente posso dizer que penso que ele esteja teoricamente errado, e que eu estou certo que sua conclusão não será aceita na prática semper ubique et ab omnibus.

Em todos os lugares a base do direito é a tradição, a tal ponto que corremos o risco de conferir uma importância exagerada ao papel exercido pela história […]

Tenho confiança em que ninguém irá entender minhas palavras como de desrespeito à lei, somente por que a crítico tão livremente. Venero a lei, e especialmente nosso sistema de leis, como um dos mais vastos produtos da mente humana. Ninguém sabe melhor do que eu o incontável número de grandes inteligências que se dedicaram a fazer algum acréscimo ou desenvolvimento, o maior deles sendo mínimo quando comparado com o todo. Seu maior título é existir, não sendo um sonho hegeliano, mas uma parte da vida dos homens. Mas pode-se criticar mesmo o que se venera. A lei é o negócio ao qual devoto minha vida, e me faltaria devoção não fizesse o que em mim permite aperfeiçoá-la, e quando percebo o que me parece ser o ideal em seu futuro, me faltaria igualmente devoção se hesitasse a denunciar o que cabe aperfeiçoar e fazer avançar com todo meu coração.

Talvez tenha dito o suficiente para mostrar a parte que o estudo de história necessariamente desempenha no estudo inteligente da lei em nossos dias […] Devemos tomar cuidado com a cilada do antiquarianismo,[v] e lembrar que para os nossos propósitos nosso único interesse no passado é devido à luz que ele lança sobre o presente. Espero pela vinda de um tempo em que a parte exercida pela história na explicação dos dogmas será pequena, e em vez da pesquisa ingênua, gastaremos nossa energia em um estudo dos fins a serem alcançados e das razões para desejá-los. Como um passo em direção a esse ideal parece-me que cada advogado deve procurar entender de economia.

O divórcio atual entre as escolas de economia política e de direito parece-me uma evidência de quanto se deve progredir no estudo filosófico a ser ainda levado a cabo. No estado presente da economia política, com efeito, recorremos ainda em larga escala à história, sendo chamados a considerar os fins da legislação, os meios para atingi-los, assim como seu custo e ponderar a respeito disso tudo. Aprendemos que para a aquisição de cada coisa, temos que abandonar outra, e somos ensinados de calcular a vantagem adquirida em contraposição à que se perde e, a saber, o que estamos fazendo quando a elegemos.

Há outro estudo que algumas vezes é menosprezado pela mente prática, sobre o qual quero dizer alguma coisa, embora pense que muita coisa de pequena importância corre sob esse nome. Quero mencionar o que se denomina jurisprudência. A Jurisprudência como eu a entendo, é simplesmente a lei em sua parte mais generalizada. Todo esforço de reduzir o caso a uma regra é um esforço de jurisprudência, embora o nome tal como é usado em inglês confine-se às regras mais amplas e às concepções mais fundamentais. Uma marca distintiva de um grande advogado é sua capacidade de ver a aplicação das regras mais amplas […] Se alguém procura a lei, ele o faz para dominá-la, e dominá-la significa passar reto sobre os incidentes dramáticos e discernir a verdadeira base para a profecia. Portanto, basta ter uma noção apurada do que se quer significar por lei, por um direito, por um dever, por malícia, por intento, por negligência, por propriedade, por posse, e, assim por diante […]

O conselho dos mais velhos aos mais jovens provavelmente é tão irreal quanto uma lista dos melhores cem livros […] A maneira de adquirir uma visão liberal de seu assunto não é ler alguma coisa, mas atingir o ponto mais profundo do próprio assunto. Os meios para fazê-lo são, em primeiro lugar, percorrer o corpo existente dos dogmas até suas mais altas generalizações com a ajuda da jurisprudência; em seguida, descobrir pela história como chegou ele a ser tal como é; e, finalmente, tanto quanto possível, considerar os fins desejados, o que deve ser abandonado para alcançá-lo, e se eles merecem tal preço […]

Os direitos e deveres primários com os quais se preocupa a jurisprudência são nada mais que profecias […] um dever legal assim denominado é tão somente uma predição de que se um homem faz ou omite alguma coisa, sofrerá desse ou daquele modo pelo juízo do tribunal; e o mesmo se diga de um direito legal. O dever de manter um contrato pelo direito consuetudinário significa uma predição de que se deve pagar os danos se não cumpri-lo, e nada mais. Se for cometido um delito civil, fica-se responsável por pagar uma soma compensatória. O não cumprimento de um contrato traz a responsabilidade pelo pagamento de uma soma compensatória a não ser que transcorra o acontecimento, sendo essa a diferença. Pode-se ver, assim, como a vaga circunferência da noção de dever diminui, ao mesmo tempo em que se torna mais precisa quando lavada com ácido cínico e expele tudo, salvo o objeto de nosso estudo, a saber, as operações da lei.

Venho falando do estudo do Direito, e praticamente nada falei do que comumente se fala ligado a isto – livros de texto, obras sistemáticas e toda maquinaria com a qual o estudante mais imediatamente entra em contato. A teoria é meu assunto, e não os detalhes práticos. Os modos de ensinar têm sido implantados desde meu tempo de estudante, mas a habilidade e a inventividade dominarão o material bruto seja por que modo for. A teoria é a mais importante parte da dogmática do direito, assim como o arquiteto é importante sujeito que toma parte na construção de uma casa.

Para o incompetente, algumas vezes é verdade, como tem sido dito, que um interesse em ideias gerais significa uma ausência de conhecimento particular […] Mas o fraco e o tonto devem ser deixados em sua tontice. O perigo está na mente competente e prática ver com indiferença e desconfiança as idéias cuja conexão com seus negócios é remota […] O objeto de ambição e poder geralmente se apresentam hoje em dia somente na forma de dinheiro. O dinheiro é a forma mais imediata, sendo um objeto próprio do desejo. “A fortuna, diz um autor, é a medida da inteligência.” Este é um belo texto para fazer acordar as pessoas do paraíso dos bobos. Mas, como diz Hegel, “Ao final, não se encontra o apetite, mas a opinião para ser satisfeita.” Para uma imaginação de qualquer escopo a forma de maior alcance do poder não é o dinheiro, mas o comando de ideias.

Caso queiram bons exemplos disso, vejam como cem anos após a morte de Descartes, suas especulações abstratas se tornaram uma força prática controlando a conduta dos homens. Leiam as obras dos grandes juristas alemães, e vejam quão mais o mundo atual é dirigido por Kant do que por Bonaparte. Nem todos nós podemos ser Descartes ou Kant, mas todos queremos a felicidade. E a felicidade, disto estou certo, já que conheci muitos homens de sucesso, não pode ser ganha simplesmente por conselho de grandes corporações e pelo ganho de cinquenta mil dólares. Uma inteligência suficientemente grande para ganhar o prêmio, precisa de outros alimentos além do sucesso. Os mais remotos e gerais aspectos da lei são os que lhe conferem interesse universal. É através deles que o homem se torna não somente um grande mestre na opinião dos outros, mas articula o assunto de seu interesse com o universo e capta um eco do infinito, lança um rápido olhar em seu insondável processo, uma sugestão da lei universal.

*Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935), foi jurista, advogado, professor universitário e juiz da Suprema Corte dos EUA.

Tradução: Lauro Frederico Barbosa da Silveira e Vinício C. Martinez.

Traduzido de POSSNER, Richard A. (ed.) The Essential Holmes. Chicago\London, The University of Chicago Press, 1992. p. 160-177.

Notas


[i] Conforme o imperativo categórico: “Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio” (segunda regra). “Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades”(terceira regra).

[ii] NT. No caso, os Estados Unidos da América.

[iii] Homo homini lupus est (nota do revisor).

[iv] NT. As passagens supressas do original dizem respeito a assuntos do momento, certamente do conhecimento do auditório. Podem também corresponder a digressões exemplares sobre investigações na história do direito consuetudinário, de questões restritas àquele direito. 

[v] Há uma forte conotação conservadora e até reacionária no uso da expressão Antiquarianismo inglês: diletantismo do partido Whig, influências do sturm und drang alemão, nacionalismo inglês, nostalgia do mundo feudal e verdadeiro terror das transformações liberais (ou de “democracia radical”) propostas pela Revoluçao Francesa.


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