Da guerra cultural brasileira

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Por Rafael dos Santos Pereira*

Compreender a centralidade da Educação no contexto da guerra cultural brasileira é importante não só para travar o combate imediato, mas também o combate permanente

No dia 24 de abril de 2020, o Presidente Jair Bolsonaro fez uma declaração pública acompanhado de grande parte de seus Ministros e Ministras de Estado. Ele procurou contextualizar e dar a sua versão sobre as denúncias feitas pelo até então Ministro da Justiça. Sérgio Moro promoveu uma coletiva de imprensa na manhã do mesmo dia, 24 de abril, em que acusou o Presidente, dentre outras coisas, de objetivar interferir politicamente no comando da polícia federal de forma que pudesse ter acesso privilegiado a inquéritos.

Jair Bolsonaro reuniu então a imprensa e fez um discurso em que abordou as diversas denúncias e insinuações feitas por Moro, além de discorrer sobre outros temas que não têm ligação direta com a crise no Ministério da Justiça e Segurança Pública. As questões que responderiam diretamente às declarações de Moro, foram lidas em três páginas ao final do evento. Tais páginas foram precedidas de um discurso improvisado.

Na ocasião, o presidente realizou um “pequeno balanço” do governo, optando por retomar diversos discursos e narrativas-chaves importantes para diversos núcleos de apoiadores de seu governo, como por exemplo a questão da ideologia de gênero, aborto e uma autoafirmada postura austera com recursos pessoais da presidência.

Dentre esses assuntos tangenciais, é possível observar um destaque dado a apenas um Ministro, além de Sérgio Moro. Também me chamou a atenção o fato de ter sido a área desse Ministro a única sobre a qual o presidente discorreu além do que não estivesse vínculo com uma justificativa de atos tomados por ele. O Ministro da Educação foi citado como exemplo de quem mais “apanha” no cumprimento da sua missão. Além da citação, houve o discorrimento de um subdiscurso sobre a área da educação.

O discurso dentro do discurso

O conteúdo do discurso é coerente com seus discursos anteriores, inclusive de campanha e com o programa de governo, como se pode observar em um estudo descritivo que publiquei recentemente. Porém, o lugar que esse subdiscurso teve num evento em que nada poderia ser ligado à educação, é que chamou a minha atenção, reforçando a ideia de que lutar a guerra cultural na educação é central para Bolsonaro, constituindo-se um eixo estruturante de seu governo, tão ou mais importante para ele do que outro assunto qualquer.

Abaixo segue a transcrição do subdiscurso do Presidente a que nos referimos:

Aqui tem ministro que apanha todo dia, como Abraham Weintraub, por exemplo, outros apanham também, mas esse é um exemplo, luta contra uma doutrinação de décadas, onde vem mostrando que a educação do Brasil nunca teve tão mal, não só as provas do pisa bem demonstram que estamos em várias matérias ultimo na américa do sul, em último no mundo, isso tem que ser mudado, ele tenta e vem demonstrando com muito trabalho, que não vale, senhores pais, senhoras mães, que seu filho tenha um pedaço de papel escrito diploma, ele tem que exercer aquele ofício, o diploma hoje em dia passou a ser apenas uma figura decorativa para alunos, ele tem que ser um bom profissional e não um bom militante. (grifos nossos)

Os grifos que fizemos apontam os pilares do discurso educacional de Bolsonaro, expressão de um projeto que tem como principal objetivo destruir o que existe, para, quem sabe, depois reconstruir seu projeto educacional sobre os escombros do passado. Chamamos a atenção para o forte caráter crítico e negacionista, estratégia eficaz para manter unidade entre as diversas colunas que lutam essa guerra comandados pelo capitão. Falar sobre como a educação dever ser em uma mesa com militares, olavistas e evangélicos, que se mantém na linha de frente, e com neoliberais, que ficam na retaguarda, seria muito mais complexo e a unidade seria praticamente impossível.

Pilares discursivos da guerra cultural

O primeiro pilar é a luta contra a doutrinação de décadas, que seria a responsável mor pelos pífios resultados acadêmicos da educação e principalmente o elemento motivador para a realização da guerra cultural, a qual se propõe libertadora de corações e mentes aprisionados pela doutrinação.

O Segundo pilar, é a situação da educação brasileira, sobretudo a pública mentida por estados e municípios, que quase a totalidade das matrículas na rede básica. Ao mesmo tempo que a situação da educação básica é sofrível e autoexplicativa, a educação superior, embora de qualidade, está contemplada na guerra cultural pelo pilar da luta contra a doutrinação.

Se o primeiro pilar tem maior constituição teórica e depende de um grande esforço discursivo e produção de provas, para ser levantado, o segundo pelar brota aos olhos de qualquer um que já frequentou como aluno ou como trabalhador uma escola pública. Esse problema, por óbvio, está nos sujeitos que capturaram a educação brasileira e produziram a doutrinação, ou seja a esquerda. O imaginário popular e o senso comum, de que as escolas públicas antigamente eram melhores, jogam a favor dessas correlações simplistas e conspiratórias.

O terceiro pilar, expresso pela frase “(…) o diploma hoje em dia passou a ser apenas uma figura decorativa (…)”, dá conta de sustentar a crítica ao projeto educacional empreendido pelos governos Lula e Dilma, com ampliação de vagas na educação técnica, tecnológica e profissional e na educação superior principalmente, mas também à massificação da escola básica realizada por Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 2002. Essa ligação é importante pois, para Bolsonaro e seus aliados, não há diferença entre os governos FHC, Lula e Dilma, aliás, tudo que veio após a ditadura militar, é considerado um mesmo processo político-ideológico comandado pelas esquerdas que eles chamam de “gramiscista”, e uma alusão às teorias políticas de Antônio Gramsci sobre o Estado e sobre a revolução.

Ainda há um grifo que não considero um pilar, porém é um elemento muito importante da conjuntura. Trata-se do elogio rasgado ao ministro da Educação, o qual tem sua cabeça colocada à prêmio, no sentido figurado (sic!), pela oposição sobretudo aquela vinculada à educação. Ao citar e reconhecer a gestão de Weintraub, Bolsonaro indica que esse ministro pode ser aquele que vai apagar a luz no fim do governo, seja o fim quando for.

Considerações finais

Em meio à pandemia ele poderia ter falado da saúde, ou da economia, temas de elevadíssimo interesse público imediato. Porém, optou por falar da Educação! Essa escolha, somada aos pilares e ao elemento que apontamos, em nosso entendimento, implicam no posicionamento da educação como eixo central da guerra cultura empreendida por Bolsonaro e seus aliados.

Compreender a centralidade da Educação no contexto da guerra cultural brasileira é importante não só para travar o combate imediato, mas também o combate permanente, aquele que se dá imediatamente após a recuperação de territórios ocupados. É preciso atingir o coração desse sistema que pretende retomar a sociedade a patamares medievais, pois é esse sistema que mantem as várias chamas, das várias colunas dessa guerra acesa, identificando inimigos comuns, mobilizando emocionalmente a militância e justificando medidas extremas, condenáveis em “tempos de paz”.

*Rafael dos Santos Pereira é doutorando em Educação pela UFPR

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