Bolsonaro e o pensamento conservador

Bill Woodrow, Sem título (94_04), 1995
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Comentário sobre um artigo de Martin Vasques da Cunha

Desde que Jair Messias Bolsonaro foi eleito para presidente da República em 2018 e demonstrou quais seriam os eixos constitutivos do seu governo diversos pesquisadores das humanidades, escritores políticos, jornalistas e formadores da opinião pública passaram a afirmar que o conservadorismo e liberalismo não tinha qualquer relação com o bolsonarismo.

A última intervenção nesse sentido foi a de Martin Vasques da Cunha no suplemento Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo de 05/09/2021 a partir de uma leitura do livro de Russell Kirk, A mentalidade conservadora recém-lançado pela editora É Realizações. É de se reconhecer de antemão o trabalho esmerado da editora em traduzir para o público brasileiro importantes pensadores políticos conservadores, além do próprio Kirk consta no catálogo da casa, Leo Strauss, Eric Voegelin, Michael Oakeshott e Roger Scruton.

A pergunta que organiza o texto de Vasques da Cunha é “ainda é válido discutir o conservadorismo em um país em que o patriarca maior [Jair Bolsonaro] se orgulha de se afirmar um seguidor [do conservadorismo]?” A resposta é autoevidente. Mas Vasques trata de esforçar-se por dizer que malgrado a catástrofe do bolsonarismo no governo debater as ideias conservadoras não só é válido como imprescindível, tendo em vista a obra de Russell Kirk.

Seria um desperdício de tempo e energia intelectual buscar flagrarmos Bolsonaro ou algum membro do seu círculo imediato do governo a ler com lápis, marca texto e post-it à mão o livro de Russell Kirk. (Tivemos apenas a sorte de testemunharmos sobre sua mesa em live de comemoração após a consumação da vitória na disputa eleitoral de 2018, o livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota de Olavo de Carvalho.) Daí que o pensamento conservador e de qualquer tipo não pode ser observado nestes termos ingênuos ao qual Vasques, de certo modo, se refere. No caso que o conservadorismo como conjunto de ideias e seus principais autores “teve e tem a ver” direta e racionalmente com a atitude concreta do bolsonarismo. Não é preciso ser marxista e postular a divisão social do trabalho (prático e intelectual); basta recorrer a Max Weber e a noção de espaços singulares de valor que advém com a era moderna para entender o “equívoco” de Vasques. E com a profissionalização da política com o surgimento dos partidos burocráticos de massa analisados por Robert Michelsno “Sociologia dos Partidos Políticos” e a especialização crescente das ciências sociais analisada por Weber essa diferenciação se tornou mais bem delineada e objetiva.

Diferente é afirmar que as ideias, sim, possuem capacidade de impulso na história e na política. Admitir isso não quer dizer que não se deva debruçar sobre o pensamento conservador e liberal. Nenhum teórico sério de qualquer tipo e corrente proferirá tal consideração. Muito pelo contrário. Ora, por outro lado afirmar que as ideias e o pensamento não têm qualquer importância na proporcionalidade de forças políticas é como dizer que as disciplinas de filosofia política, teoria política e teoria social devem ser desprezadas enquanto aspectos mesmo da história concreta das sociedades humanas. Tomemos Edmund Burke, autor dileto de Russell Kirk – e, supostamente, de Vasques e toda uma coorte de conservadores brasileiros.

A Revolução Francesa se quer tinha entrado no sua fase mais radical, o período do Comitê de Salvação Pública com os jacobinos na organização, quando Burke escreveu as “Reflexões sobre a Revolução Francesa” em 1790. A obra, que dá início ao pensamento conservador, desse colaborador do duque de Rockingham e deputado na Câmara dos Comuns desde 1765 pelos Whigs, não só tornou Burke um autor de autêntica fama, como circulou pela Europa ganhando traduções para o francês e o alemão. Antes de Burke morrer em 1797, “Reflexões…” onze edições em um único ano e havia alcançado 30.000 exemplares durante toda a vida do seu autor. Já na Inglaterra as ideias de Burke – e aqui não sabemos em termos numéricos quantos daqueles leram efetivamente o texto conservador iniciático – mobilizaram a ação política dos Whigs, pois é pouco provável que a declaração e atitude de guerra contrarrevolucionária sem tréguas à França jacobina não tenha tido se quer o espírito burkeano em algum momento atravessado o ambiente inglês de então.

Entretanto, Edmund Burke ultrapassou as fronteiras inglesas. É muito pouco provável que esse fino teórico da estética, que sempre foi infenso às generalizações geométricas e um inimigo jurado dos homens das letras, tenha pretendido que o livro escrito para o público na Inglaterra chegasse à Alemanha e à França. Mas ideias não são como Martim Vasques da Cunha deixa supor: a construção lapidar de tópicos para serem utilizadas na política por políticos e partidos. Elas se propagam. E assim aconteceu com o conservadorismo de Burke que chegou a Friedrich von Gentz (1764-1832) escritor e político alemão e a Joseph De Maistre (1753-1821) diplomata da Sardenha em São Petersburgo. Nos dois casos, a relativa afeição pelo ocorrido na França revolucionária não mais existiu de quando leram a obra de Burke – Gentz passou a posições notoriamente antirrevolucionárias e Maistre em carta a seus interlocutores se confessava antidemocrático e antigálico. As ideias de Burke são conhecidas para detalharmos elas neste espaço, basta dizermos que o Whig asseverava: costumes imemoriais, organização hierarquizada, autoridade, desprezo pelos Philosophes, incapacidade do povo para o governo e as virtudes aristocráticas. J. G. A. Pocock sintetizou com genialidade o pensamento de Burke ao dizer que “tomando as ‘Reflexões sobre a Revolução na França’ como um texto único nos podemos ver que o sistema social está sendo reivindicado, em primeiro lugar, como sagrado: como parte de uma corrente de ordem eterna ligando os homens a Deus […] daí a inclusão da organização da Igreja [como instituição fundamental]; e em segundo lugar como [ordem] natural […] como parte da lei eterna implantada por Deus”.

Russell Kirk como Martin Vasques da Cunha afirma foi um burkeano (convicto); “Kirk viu em Burke uma espécie de ‘alma gêmea’, um espelho das suas inquietações políticas e existenciais. Ambos olhavam o mundo onde viviam imerso na decadência religiosa, no desprezo pela comunidade […]”. Antes ser um prestigiado escritor conservador Kirk escreveu um livro de pouco impacto comparado com a obra posterior. “Randolph of Roanoke”, sobre o político da Virgínia no fim do século XVIII e início do XX, não alçou Kirk ao lugar que ocuparia depois no movimento conservador norte-americano com o The Conservative Mind [A mentalidade conservadora].

Com o elogio de Robert Nisbet, T. S. Eliot e Henry Regnery, sustenta George Nash em The Conservative Intellectual Movement in América Since 1945, o imenso volume de Kirk ganhou a aprovação do New York Times e do Times. Assim, Kirk e A mentalidade conservadora foram decisivos para que a rearticulação da direita americana “alcançasse pleno florescimento” diz Nash. Suas ideais circularam, seu estilo de compreender a sociedade americana atravessava os debates públicos, seu Burke foi lido como o pensador para qualquer projeto intelectual e cultural vislumbrando a ordem social e a estabilidade das instituições estatais. É Vasques que tem de argumentar que o pensamento conservador de Kirk não influenciou o equilíbrio de forças políticas – nos anos 1950 e 1960 no contexto de surgimento das manifestações da Nova Esquerda.

Do ponto de vista crítico uma questão pode ser formulada acerca do conservadorismo e alguns liberalismos (mesmo Vasques da Cunha enfatizando que Kirk advogava na imaginação moral o fato de essa “aceitar a falibilidade humana, mas também, e principalmente, a única forma necessária para encarar o grande problema que atormenta a todos nós, a despeito de nossa situação política: a morte e o sofrimento.”); quais as implicações políticas e sociais desse pensamento dado que vivemos uma era histórica em que a estrutura imanente-discursiva é a negação existencial por indivíduos, classes e grupos de uma vida destinada naturalmente para a “morte e o sofrimento”?

Não foi a modernidade a busca incessante – o que Habermas entendeu como a abertura para o novo, o “tempo mais recente”, a “renovação contínua” – para atenuar com lutas políticas e ousadia nosso destino natural? Conservadores, invariavelmente, nunca meditam sobre isso. É como se toda a humanidade tivesse que aceitar a imposição intransigente de que a ordem natural (hierarquia, autoridade, sofrimento de alguns, virtude de uns poucos, costumes prejudiciais) é intransponível: mesmo já tendo demonstrado que não a aceitaram e continuarão a não aceitar.

Mas e quanto à relação entre o governo de Jair Bolsonaro e os pensamentos conservador e liberal, a preocupação lateral de Vasques da Cunha? Já que seu texto é muito mais a história das ideias anglo-saxônicas e sua ainda validade para nosso contexto que um tratamento daqueles vis-à-vis ao Brasil. Um procedimento que muito provavelmente não agradaria o inimigo originário das generalizações e abstrações recomendadas a sociedades nacionais particulares. É fácil e cínico hoje, para conservadores e liberais, sustentar que Bolsonaro e o grupo próximo dele não “tem nada a ver” com as ideias de Burke, Russell Kirk e Michael Oakeshott (não fortuitamente o elegante e amaneirado tradicionalismo inglês). Que os bolsonaristas nem de longe entendem a prudência e cuidado liberal-conservative na conduta política. Não acredito que escritores eruditos em filosofia política como Vasques da Cunha e outros, verdadeiramente, professem com seriedade e convicção tais raciocínios primários. Vivemos tempos de obscenidade; mas há um limite, espero, mesmo para o obsceno.

A pergunta que Vasques da Cunha poderia ter feito a si mesmo é: qual o pensamento e ideias que circularam sistematicamente na sociedade brasileira nos anos que antecederam a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018? O que diversos colunistas, jornalistas, escritores, ensaístas, filósofos e formadores de opinião de temperamento burkeano-kirkeano escreviam, falavam e difundiam no arco político e histórico de 2014 a 2018? (Ora, pensamento e ideais estão enredadas pelo chão histórico das disputas e lutas sociais e políticas, sobretudo, na modernidade – elas são mobilizadoras mesmo mantendo seu brilho e sublimidade.)O personagem Coringa (Heath Ledger) de Batman – o Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan tinha razão quando disse – “loucura é como a gravidade, só precisa de um empurrãozinho […]”. Infelizmente, caro Martin Vasques da Cunha, ideias e pensamentos em uma sociedade com interesses materiais distintos circulam e podem dar um empurrão na loucura: neste caso a loucura tem custado a vida de milhares de pobres, negros, mulheres e LGBTQI+.

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

 

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