Perspectivas sombrias

Imagem: Jorge Jesus
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Por NOURIEL ROUBINI*

A festa acabou e há um reconhecimento crescente de que não só a economia global, mas até mesmo o ser humano está sob risco

Desde a publicação de Megathreats, em outubro de 2022, os temas que aí enfatizei se tornaram mainstream. Todos agora reconhecem que as ameaças econômicas, monetárias e financeiras estão aumentando e interagindo perigosamente com vários outros desenvolvimentos sociais, políticos, geopolíticos, ambientais, de saúde e tecnológicos.

Assim, em dezembro de 2022, o Financial Times escolheu o termo “policrise” como uma das palavras-chaves do ano. Seja qual for o termo preferido (outros adotaram “permacrises” ou “calamidades confluentes”), há um reconhecimento crescente de que não só a economia global, mas até mesmo o ser humano está sob risco.

Como alertei nesse livro, a “grande moderação” (um longo período de baixa volatilidade macroeconômica que ocorreu após meados da década de 1980) deu lugar à “grande estagflação”. Em 2022, testemunhamos um aumento da inflação nas economias avançadas e nos mercados emergentes, assim como uma forte desaceleração do crescimento global que continuou em 2023. Aparecerem, então, sinais de graves problemas de dívida dos setores público e privado, à medida que os bancos centrais aumentaram as taxas de juros para estabilizar os preços.

Devido a esse aperto na política monetária, a inflação caiu em todo o mundo. Além disso, o impacto de choques negativos de oferta de curto prazo – a pandemia, o aumento dos preços das commodities após a invasão da Ucrânia pela Rússia e a política de “zero COVID” da China – vem desaparecendo gradualmente ao longo de 2023. Mas a inflação permanece bem acima da meta de 2% nas economias avançadas. Entretanto, uma dúzia de outros choques negativos de oferta agregada – apresentados no livro como mega-ameaças de médio prazo – se tornaram mais severos.

Por exemplo, a desglobalização continuou, com mais países mudando do livre comércio para o comércio seguro, assim como da integração econômica para a dissociação e “desvinculação”. Reshoring, near-shoring e “friend-shoring” implicam um tradeoff entre eficiência e resiliência, com cadeias de suprimentos globais just-in-time sendo substituídas por arranjos “just-in-case“.

Além disso, o envelhecimento social na Europa, Japão e China está reduzindo a oferta de trabalhadores em um momento em que as restrições à imigração estão dificultando o fluxo de mão de obra dos países pobres para os ricos – o que aumenta os custos do trabalho. As mudanças climáticas já estão alimentando a insegurança energética e alimentar. Prosseguem os aumentos dos custos de energia e alimentos, mas o mundo ainda não fez o suficiente para se preparar para os desastres futuros, incluindo as pandemias.

Além disso, há os novos riscos subvalorizados representados pela guerra cibernética e pela desinformação aprimoradas agora por Inteligência artificial. Persistem também os problemas mais antigos, como o aumento da desigualdade de renda e riqueza (que podem levar a mais políticas fiscais de aumento salarial e de apoio às políticas populistas). Finalmente, à medida que os Estados Unidos se apoiam mais fortemente no dólar como ferramenta de política externa, a desdolarização continua sendo um risco agudo.

Assim, apesar da moderação de curto prazo dos choques relacionados à COVID, o mundo ainda enfrenta grandes riscos de estagflação (crescimento menor e inflação mais alta), a maioria dos quais provavelmente se tornará mais forte na próxima década.

A festa acabou

Também alertei anteriormente que as elevados e crescentes proporções das dívidas públicas e privadas, que atingiram 330% do PIB a nível mundial em 2022 (420% nas economias avançadas e mais de 300% na China), marcam uma mudança dramática em relação ao período pré-2021, quando essas proporções eram elevadas, mas os serviços da dívida eram baixos.

A década de estagnação secular após a crise financeira global foi caracterizada por baixo crescimento da demanda agregada, grande poupança privada e pública e baixas taxas de investimento. O crescimento lento levou a baixas taxas de juros ajustadas pela inflação. As taxas de juros próximas de zero ou mesmo negativas, combinadas com a flexibilização quantitativa e de crédito, mantiveram as taxas nominais e reais muito baixas – e muitas vezes negativas – tanto na ponta curta quanto na ponta longa da curva de juros.

Mas esse ambiente de dinheiro fácil acabou. Os choques negativos de oferta da pandemia, juntamente com as políticas de estímulo em resposta a ela, levaram a um aumento da inflação a partir de 2021. Os bancos centrais reagiram (eventualmente) subindo as taxas nominais e reais. Mas com as proporções das dívidas pública e privada tão elevadas, os bancos centrais estão tendo dificuldade em reduzir a inflação para a meta de 2%. Eles estão presos em uma “armadilha da dívida”, enfrentando não apenas um dilema – como alcançar uma inflação de 2% sem causar um pouso econômico forçado – mas um “trilema”: como alcançar a estabilidade de preços ao mesmo tempo em que evita uma recessão e uma crise financeira.

Os desenvolvimentos desde a publicação de Megathreats confirmaram que este trilema é um problema sério. Se os bancos centrais continuarem aumentando as taxas de juros para reduzir a inflação para 2%, uma recessão e problemas de dívida entre os tomadores de empréstimos públicos e privados altamente alavancados se tornam mais prováveis. Mas se os formuladores de políticas piscarem e desistirem de sua meta de estabilidade de preços, a inflação e as expectativas de inflação podem se desancorar, desencadeando uma espiral de preços salariais.

Até agora, os bancos centrais não piscaram. Mas se a inflação permanecer acima da meta – como parece provável, dado o alto crescimento salarial e o alçamento dos preços das commodities – eles eventualmente podem se dobrar às evidências para evitar causar uma recessão econômica e uma crise financeira. O fato de já terem pausado os aumentos de juros, apesar da inflação básica muito alta (que exclui os voláteis preços de alimentos e energia) sugere que eles podem estar se preparando para aceitar uma inflação acima da meta.

Algumas guerras a mais

Além dos choques negativos de oferta agregada, várias tendências de demanda agregada também implicam que a inflação será mais alta. À medida que os déficits crescem, os bancos centrais podem eventualmente ser forçados a monetizar a dívida pública. E os déficits aumentarão porque muitos países-chave estão envolvidos em pelo menos seis batalhas (incluindo algumas guerras reais) que exigirão níveis maiores de gastos.

Para começar, estamos agora em uma “depressão geopolítica”, devido à intensificação da rivalidade entre o Ocidente e potências revisionistas (tacitamente aliadas) como China, Rússia, Irã, Coreia do Norte e Paquistão. A invasão da Ucrânia pela Rússia ainda pode se expandir e arrastar a OTAN. Israel – e possivelmente os EUA – está em rota de colisão com o Irã, que está no limiar de se tornar mais um Estado que possui armas nucleares.

A horrível operação militar de Israel em Gaza em resposta ao massacre de civis israelenses pelo Hamas em 7 de outubro corre o risco de atiçar as chamas de um conflito regional mais amplo, o que causaria outro aumento nos preços da energia. Enquanto isso, os EUA e a China continuam a discutir a influência na Ásia e o destino de Taiwan. Com os EUA, a Europa, a OTAN e praticamente todos no Oriente Médio e na Ásia se rearmando, níveis mais altos de gastos com armas convencionais e não convencionais (incluindo nucleares, cibernéticas, biológicas e químicas) estão praticamente garantidos.

A batalha contra as alterações climáticas também será dispendiosa. Espera-se que o custo de mitigação e adaptação seja de trilhões de dólares por ano nas próximas décadas. É ingênuo pensar que todos esses investimentos impulsionarão o crescimento. Considere uma verdadeira guerra que destrói grande parte do suporte físico do capital em um país. Embora uma onda de investimento em reconstrução possa produzir uma expansão econômica, o país ainda está mais pobre por ter perdido uma grande parte de sua riqueza. O mesmo acontece com os investimentos climáticos. Uma parte significativa do capital social existente terá de ser substituída, quer porque se tornou obsoleto, quer porque foi destruído por acontecimentos climáticos.

Há também uma dispendiosa batalha a travar contra futuras pandemias. Por uma variedade de razões – algumas delas relacionadas às mudanças climáticas – surtos de doenças com potencial para se tornarem pandemias se tornarão mais frequentes. Quer os países invistam na prevenção ou lidem com futuras crises de saúde após o acontecimento, custos mais altos em uma base perpétua aumentarão o fardo crescente associado ao envelhecimento da sociedade e aos sistemas de saúde e planos de pensão pagos conforme o uso. Estima-se que esses passivos implícitos não financiados já estejam acima do nível da dívida pública explícita para a maioria das economias avançadas.

Também podemos esperar uma mobilização bélica para lidar com os efeitos disruptivos das “individualidades globalizadas”: a combinação de globalização e automação que está ameaçando um número crescente de ocupações de colarinho azul e branco, incluindo empregos criativos e gerenciais. Os governos estarão sob crescente pressão para ajudar aqueles que ficaram para trás, seja por meio de esquemas de renda básica, transferências fiscais mais altas ou serviços públicos expandidos.

Esses custos permanecerão altos, mesmo que a automação leve a um aumento no crescimento econômico. Por exemplo, os EUA teriam de gastar 20% do PIB apenas para sustentar uma parca renda básica universal de US$ 1.000 por mês.

Depois, há a luta relacionada contra o aumento da desigualdade de renda e riqueza. Esta batalha está se tornando cada vez mais urgente, agora que o mal-estar que aflige os jovens e muitas famílias da classe média e trabalhadora está a alimentar uma reação contra a democracia liberal e o capitalismo de livre mercado. Para evitar que regimes populistas cheguem ao poder e sigam políticas econômicas imprudentes e insustentáveis, as democracias liberais precisarão gastar pesado para reforçar suas redes de segurança social – como muitos já estão fazendo.

Finalmente, gerenciar o envelhecimento social exigirá esforços hercúleos. Os sistemas de saúde e pensões acrescentarão à dívida pública explícita (que já atingiu um nível de 112% do PIB, em média, nas economias avançadas) uma dívida implícita que é muitas vezes maior.

Essas batalhas são necessárias, mas serão caras. Ora, as restrições econômicas e políticas limitarão a capacidade dos governos de financiá-las com impostos mais altos. As proporções entre impostos e PIB já são elevadas na maioria das economias avançadas – especialmente na Europa; a evasão e a arbitragem fiscais complicarão ainda mais os esforços para aumentar os impostos sobre os rendimentos elevados e o capital (supondo que tais medidas possam mesmo passar pelos lobistas ou obter apoio dos partidos de centro-direita).

Inflação e gastos

Maiores gastos e transferências governamentais, sem um aumento proporcional das receitas fiscais, farão com que os déficits orçamentários estruturais cresçam ainda mais do que já são, levando potencialmente a índices de dívida insustentáveis que aumentarão os custos dos empréstimos e culminarão em crises da dívida – com efeitos adversos óbvios sobre o crescimento econômico. É claro que, nessas condições, muitos países emergentes e em desenvolvimento com dívidas denominadas em moeda estrangeira precisarão entrar em default ou passar por reestruturações coercitivas. Mas para os países que tomam empréstimos em suas próprias moedas, a opção conveniente será permitir uma inflação mais alta como meio de corroer o valor real da dívida nominal sob taxas fixas de longo prazo.

Esta abordagem, que funciona como um imposto sobre os financiadores e credores e um subsídio para mutuários e devedores, pode então ser combinada com outras medidas draconianas, como a repressão financeira ou os impostos sobre o capital. Como muitas dessas medidas não exigem aprovação explícita do legislativo ou do executivo, elas inevitavelmente se tornam o caminho de menor resistência quando déficits e dívidas se mostrarem insustentáveis.

Os mercados de títulos já começaram a sinalizar preocupações com os déficits fiscais insustentáveis e com as dívidas públicas crescentes. E isso não apenas em países pobres e em mercados emergentes, mas também em economias avançadas. Um aumento acentuado nas taxas dos títulos de longo prazo na Europa e nos EUA indica que a demanda por títulos está encolhendo à medida que a oferta aumenta com déficits orçamentários crescentes.

Quando os bancos centrais mudam a sua política de relaxamento monetário para aperto quantitativo, os investidores buscam prêmios de risco mais altos e os rivais dos EUA reduzem gradualmente suas reservas em dólares. Além disso, provavelmente haverá ainda mais pressão de alta sobre  as taxas de longo prazo nos EUA e em outros países do G-10 quando o Japão começar a normalizar a política monetária e abandonar a política de controle da curva de juros que usou para manter as taxas de longo prazo perto de 0%.

E não são apenas os rendimentos nominais dos títulos que estão subindo; assim como os rendimentos reais. Durante a década de estagnação secular, os rendimentos reais de longo prazo foram próximos de zero ou negativos, devido à alta poupança e às baixas taxas de investimento. Contudo, estamos entrando em uma era de poupança pública negativa (déficits fiscais crescentes), menor poupança privada (impulsionada pelo envelhecimento e menor crescimento da renda) e maiores taxas de investimento (devido à mitigação e adaptação às mudanças climáticas, gastos com infraestrutura e IA).

Assim, as taxas reais são positivas e estão sendo empurradas para cima por prêmios de risco mais altos nos títulos públicos à medida que as dívidas aumentam. Alguns bancos de investimento agora estimam que a taxa de equilíbrio de longo prazo está próxima de 2,5%, enquanto pesquisas acadêmicas recentes colocam-na mais perto de 2%. De qualquer forma, o custo nominal e real do capital será muito maior no futuro.

Dados os fatores agregados de oferta e demanda que elevam a inflação, a nova meta de inflação de fato (embora não oficial) na próxima década pode se aproximar de 4 ou 5%. Mas aceitar uma taxa de inflação mais alta pode desancorar as expectativas de inflação – como aconteceu na década de 1970 – com sérias consequências para o crescimento econômico e os retornos dos ativos financeiros.

Depois da bolha de bolhas

Até 2021, a flexibilização monetária, fiscal e de crédito inflacionava as avaliações de praticamente tudo: ações americanas e globais, imóveis e títulos públicos e corporativos; empresas de tecnologia, crescimento e risco; e ativos especulativos como criptomoedas, ações meme e SPACs (empresas de aquisição de propósito específico). Quando essa “bolha de bolhas” estourou em 2022, os ativos especulativos – começando com ações de capital de risco, criptomoedas e memes – perderam muito mais valor do que as ações tradicionais.

Mas ativos seguros, como títulos do governo, também perderam dinheiro, já que taxas de juros de longo prazo mais altas derrubaram os preços dos títulos. Por exemplo, o aumento dos rendimentos dos títulos nos EUA de 1% para 3,5% em 2022 implicou que os títulos do Tesouro de dez anos perderam mais em preço (-20%) do que o S&P 500 (-18%). Este ano trouxe perdas adicionais em títulos de longa duração (cerca de -15% em termos de preço), à medida que os rendimentos dos títulos subiram ainda mais em direção a 5%. Modelos tradicionais de alocação de ativos que equilibram ações contra títulos, portanto, perderam em ambas as frentes.

É provável que esse banho de sangue continue. Com uma inflação média de 5%, em vez de 2%, os rendimentos dos títulos de longo prazo precisariam estar mais próximos de 7,5% (5% para a inflação e 2,5% para um retorno real). Mas se os rendimentos dos títulos subirem dos atuais 4,5% para 7,5%, isso causará uma queda nos preços dos títulos (em 30%) e nas ações (com um mercado em baixa), porque o fator de desconto para dividendos será muito maior. Globalmente, as perdas para detentores de títulos e investidores em ações podem chegar a dezenas de trilhões de dólares na próxima década.

É certo que as ações americanas e globais subiram até meados de 2023, após o mercado em baixa de 2022. Porém, a maior parte disso foi impulsionada por um pequeno grupo de ações de Big Tech que se beneficiou da esperança e do hype em torno da Inteligência artificial generativa. Se excluirmos esses high-flyers, os mercados se mostraram quase estáveis.

Além disso, durante a maior parte de 2023, os investidores estavam empenhados em pensamentos ilusórios sobre o fim do ciclo de alta de juros por decisões dos bancos centrais, com muitos até apostando em cortes de juros no futuro próximo. Mas a inflação persistente frustrou essas esperanças, levando os bancos centrais a adotar uma política de “mais alta por mais tempo”, o que provavelmente levará a uma contração econômica e estresse financeiro adicional. No verão e outono passados, os rendimentos dos títulos dos EUA subiram de 3,7% para 5%, juntamente com outra correção significativa das ações americanas e globais.

No que diz respeito ao crescimento, a zona euro e o Reino Unido já estão numa quase recessão estagnada. A China, por sua vez, está atolada numa desaceleração estrutural. Embora os EUA tenham evitado uma recessão, ainda podem acabar em uma recessão curta e superficial. Isso ocorrerá se a política do Fed articulada como “um pouco mais de juros por mais algum tempo” fizer com que os rendimentos elevados dos títulos persistam.

Depressão geopolítica

De qualquer forma, o risco de um mercado em baixa nas ações é mais secular do que cíclico. Se um conjunto expressivo de mega-ameaças se materializar na próxima década, o seu impacto estagflacionário prejudicará as ações no médio prazo.

Todas as evidências recentes sugerem que a “depressão geopolítica” está piorando: a invasão da Ucrânia pela Rússia evoluiu para uma guerra de desgaste, com os ucranianos montando uma contraofensiva extenuante para recuperar o território que perderam em 2022. A guerra poderia facilmente se intensificar, atrair outras partes – como a OTAN – ou escalar com o uso de armas não convencionais. Tais cenários, é claro, trariam novos picos nos preços de energia e commodities.

No Oriente Médio, o Irã está prestes a dar o passo final do enriquecimento de urânio para a construção de uma arma nuclear. Isso põe Israel diante de uma escolha fatídica: aceitar um Irã com armas nucleares e esperar que a dissuasão tradicional funcione ou lançar um ataque militar – o que causaria um forte aumento nos preços do petróleo (entre outras coisas), potencialmente levando a economia global a uma recessão estagflacionária. O conflito entre Israel e o Hamas sobre Gaza pode muito bem escalar para um conflito regional envolvendo o Irã e seu representante libanês Hezbollah.

Na Ásia, a guerra fria entre os EUA e a China está ficando mais fria e pode esquentar se a China decidir reunir Taiwan ao continente à força. E enquanto a atenção do mundo está focada na Ucrânia, Taiwan e Gaza, a Coreia do Norte está se tornando mais agressiva com seus lançamentos de mísseis sobre as águas ao redor da Coreia do Sul e do Japão.

Desses riscos, o maior é uma escalada da guerra fria sino-americana. Após a cúpula do G-7 em maio de 2023 em Hiroshima, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que esperava um “degelo” com a China. No entanto, apesar de algumas reuniões bilaterais oficiais, as relações permanecem geladas. De fato, a própria cúpula do G-7 confirmou os temores chineses de que os EUA adotem uma estratégia de “contenção, cerco e supressão abrangentes”.

Ao contrário das reuniões anteriores, quando os líderes do G-7 ofereceram principalmente conversa e pouca ação, a cúpula de Hiroshima pode ter sido a mais importante da história do grupo. A recente cúpula em São Francisco entre o presidente chinês, Xi Jinping, e Joe Biden não mudou nada estrutural na colisão entre EUA e China. Apesar de um desanuviamento parcial de curto prazo, a guerra fria está se tornando mais fria ainda; ademais, ela pode eventualmente se tornar quente sobre a questão de Taiwan.

Afinal, EUA, Japão, Europa e seus amigos e aliados deixaram mais claro do que nunca que pretendem unir forças para combater a China. O Japão, como anfitrião, certamente convidará os principais líderes do Sul Global a quem quer se alistar para conter a ascensão da China. O principal deles foi o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Embora a Índia (que ocupou a presidência do G20 em 2023) tenha assumido uma posição neutra sobre a guerra da Rússia na Ucrânia, há muito tempo mantém uma rivalidade estratégica com a China, em parte devido à longa fronteira compartilhada dos dois países, cujas partes permanecem disputadas.

Mesmo que a Índia não se torne um aliado formal dos países ocidentais, continuará a se posicionar como uma potência independente e em ascensão, cujos interesses estão mais alinhados com o Ocidente do que com a China e seus aliados de fato (Rússia, Irã, Coreia do Norte e Paquistão). Além disso, a Índia é membro formal do Diálogo de Segurança Quadrilateral (o Quad) com os EUA, Japão e Austrália, cujo objetivo explícito é dissuadir a China. Japão e Índia têm relações amistosas de longa data e uma história compartilhada de relações adversárias com a China.

O Japão também convidou Indonésia, Coreia do Sul (com quem busca um degelo diplomático, impulsionado por preocupações comuns com a China), Brasil (outra importante potência do Sul Global) e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para o G-7. Em todos os casos, a mensagem foi clara: a amizade sino-russa “sem limites” está tendo e terá sérias consequências no modo como outras potências percebem a China.

Em seu comunicado final, o G-7 explicou detalhadamente como enfrentará e dissuasirá a China nos próximos anos. Criticou a “coerção econômica” chinesa e o expansionismo nos mares do Leste e do Sul da China, enfatizou a importância de uma parceria Indo-Pacífico e emitiu um aviso claro à China para não atacar ou invadir Taiwan.

Ao tomar medidas para “desarriscar” suas relações com a China, os líderes ocidentais estabeleceram uma linguagem que é apenas um pouco menos agressiva do que aquela que fala em “desacoplamento”. Mas não foi só o discurso diplomático que mudou. De acordo com o comunicado, os esforços de contenção ocidentais serão acompanhados por grandes investimentos em energia limpa e infraestrutura em todo o Sul Global, para que as principais potências médias não sejam atraídas para a esfera de influência da China por meio de sua Iniciativa Cinturão e Rota.

Enquanto isso, a guerra tecnológica e econômica entre ocidentais e chineses continua a escalar. O Japão recentemente impôs restrições às exportações de semicondutores para a China. E elas não são menos draconianas do que as introduzidas pelos EUA. Ademais, o governo Joe Biden desde então pressionou Taiwan e Coreia do Sul a seguirem o exemplo. Em resposta, a China proibiu  os semicondutores fabricados pela fabricante de chips norte-americana Micron. Além disso, começou a restringir as exportações de alguns metais críticos sobre os quais tem um quase monopólio na produção e refino.

Da mesma forma, a fabricante americana de chips Nvidia – que está rapidamente se tornando uma superpotência corporativa, devido à crescente demanda por seus chips avançados para alimentar aplicações de IA – está enfrentando novas restrições para vender para a China. Os formuladores de políticas dos EUA deixaram claro que pretendem manter a China pelo menos uma geração atrás na corrida pela supremacia da IA. Para esse fim, o US CHIPS and Science Act de 2022 introduziu incentivos maciços para a retomada da produção de chips.

O risco agora é que a China aproveite seu papel dominante na produção e refino de metais de terras raras que são insumos fundamentais na transição verde. A China já aumentou suas exportações de veículos elétricos em cerca de 700% em termos de valor desde 2017. Ela está começando a produzir aviões comerciais que eventualmente poderiam competir com a Boeing e a Airbus. Assim, enquanto o G-7 quer dissuadir a China sem escalar a guerra fria, a resposta de Pequim sugere que a agulha ainda entrou no buraco.

É claro que os chineses gostariam de esquecer que suas próprias políticas agressivas contribuíram para a situação. Em entrevistas que marcaram seu 100º aniversário em maio, Henry Kissinger – o arquiteto da “abertura dos Estados Unidos à China” em 1972 – alertou o seguinte: a menos que os dois países encontrem um novo entendimento estratégico, permanecerão em rota de colisão que pode terminar em guerra total. Quanto mais profundo o congelamento, maior o risco de uma violenta repressão e hostilidades militares nesta década.

Mesmo sem uma verdadeira guerra quente entre os EUA e a China, uma guerra mais fria significará mais fragmentação da economia global. Implicará, também, em mais balcanização das cadeias de suprimentos globais, mais desvinculação ou dissociação e mais restrições aos fluxos transfronteiriços de bens, serviços, capital, pessoas, dados e conhecimento. O livre comércio neoliberal acabou. Políticas industriais, “economia interna”, subsídios e comércio seguro já estão sendo implantadas, à medida que o mundo se divide cada vez mais em dois domínios econômico, monetário, financeiro, moeda, comércio, investimento e tecnológico.

Outros elefantes na sala

Ao mesmo tempo, os custos das alterações climáticas continuarão a aumentar rapidamente. Os cientistas esperam agora que as temperaturas médias globais atinjam 1,5° Celsius acima dos níveis pré-industriais – a meta do acordo climático de Paris – nos próximos cinco anos. Para conter o aumento da temperatura, as emissões de gases de efeito estufa teriam que ser reduzidas pela metade até 2030 – o que é basicamente impossível.

Mesmo que todos os compromissos assumidos na COP26 em Glasgow e na COP27 em Sharm El-Sheikh fossem cumpridos – uma grande dúvida persiste – as temperaturas ainda estariam a caminho de atingir 2,4°C acima dos níveis pré-industriais até o final do século. Na ausência de ação real, o greenwashing, o greenwishing e a greenflation estão se tornando desenfreados.

A boa notícia é que há muitas opções tecnológicas que podem acelerar a descarbonização, ajudando a alcançar emissões líquidas zero com impacto limitado no crescimento econômico: energia renovável, captura e armazenamento de carbono, hidrogênio limpo e verde e fusão nuclear. A má notícia é que a fusão ainda está longe da comercialização, assim como muitas das outras opções que continuam caras em comparação com os combustíveis fósseis. A forma como a humanidade lida com as mudanças climáticas equivale a um naufrágio em câmera lenta – mas com uma aceleração gradual.

Para piorar a situação, os mercados emergentes mais pobres e os países em desenvolvimento estão enfrentando perspectivas econômicas terríveis. Depois de uma recuperação anêmica da pandemia de COVID-19, eles suportaram o peso dos preços mais altos de alimentos e energia após a invasão da Ucrânia pela Rússia. A inflação mais alta corroeu a renda real e suas moedas se enfraqueceram em relação ao dólar. Isso, combinado com juros mais altos, deixou muitos com dívidas insustentáveis. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial estimam que cerca de 60% dos países pobres e 25% dos mercados emergentes não conseguirão pagar suas dívidas e precisarão reestruturá-las.

Nesse contexto, o aumento da pobreza, as mudanças climáticas, a desigualdade e os conflitos sociais poderiam facilmente levar à instabilidade política interna ou mesmo a estados falidos, causando migração em massa e alimentando a tendência ao populismo econômico. A maior parte da América Latina é agora governada por populistas de esquerda, enquanto o populismo autoritário de extrema-direita está em ascensão em outras partes do mundo.

Nos EUA, Donald Trump é claramente favorito para ser nomeado como candidato do Partido Republicano para as eleições presidenciais do próximo ano; ele poderá voltar e retomar a Casa Branca. No Reino Unido, o demagogo Boris Johnson continua muito popular. Um partido com raízes fascistas governa a Itália; a ultradireitista Marine Le Pen continua sendo a líder de fato da oposição na França. Na Turquia, o recém-reeleito presidente Recep Tayyip Erdogan continua a consolidar um regime autocrático. Até o ataque do Hamas, Israel era governado pela coalizão mais à direita de sua história. E, claro, os presidentes russo e chinês, Vladimir Putin e Xi Jinping, formaram um novo eixo autoritário.

Finalmente, no ano desde que as mega-ameaças, a Inteligência artificial se tornou um tópico ainda mais importante, devido ao lançamento público de plataformas de Inteligência artificial generativas como o ChatGPT. Eu havia originalmente previsto que as arquiteturas de aprendizagem profunda (“redes transformadoras”) revolucionariam a Inteligência artificial; agora, parece que isso realmente aconteceu.

Os potenciais benefícios – e armadilhas – da Inteligência artificial generativa são profundos e estão se tornando cada vez mais claros. Do lado positivo, o crescimento da produtividade poderia ser acentuadamente aumentado, ampliando consideravelmente o bolo econômico. Mas, como aconteceu com a primeira revolução digital e a criação da internet e suas aplicações, levará tempo para que tais ganhos surjam e alcancem escala.

Os riscos associados à Inteligência artificial também estão se tornando claros. Muitos se preocupam com o desemprego tecnológico permanente – não apenas entre os trabalhadores de colarinho azul pouco qualificados, mas também em todas as profissões criativas. Em um cenário extremo, a economia daqui a duas décadas poderia estar crescendo a uma taxa de 10% ao ano, mas com desemprego em 80%. Um risco relacionado, então, é que a Inteligência artificial será outra indústria vencedora que turbina a desigualdade de renda e riqueza. Subsiste aqui tanto uma previsão contraditória quanto uma contradição profunda.

A Inteligência artificial também terá um efeito semelhante na desinformação, inclusive por meio de vídeos “deep fake” e várias formas de guerra cibernética, especialmente em torno das eleições. E, claro, há o pequeno, mas terrível risco de que os avanços na Inteligência artificial levem à AGI (inteligência artificial geral) e à obsolescência da espécie humana.

O debate sobre se as empresas de tecnologia devem ser regulamentadas de forma mais rigorosa – ou mesmo desmembradas – continua a se intensificar. Mas o contra-argumento óbvio é que os EUA precisam de grandes empresas de tecnologia e Inteligência artificial para garantir seu domínio global e, em especial, sobre a China. Esta última – note-se – está fazendo tudo o que pode para se tornar uma superpotência militar.

Felizmente, se a Inteligência artificial inaugurar um mundo de crescimento anual de 10%, uma redistribuição de renda substantiva poderia muito bem ser possível. Além disso, a Inteligência artificial também pode nos ajudar a lidar com outras mega-ameaças, como mudanças climáticas e futuras pandemias. Embora nenhum desses resultados positivos possa ser dado como certo, dado o poder e a influência que as elites dominantes exercem, os problemas de distribuição são sempre mais fáceis de enfrentar em um cenário de alto crescimento do que em um de baixo crescimento.

Embora as forças estagflacionárias pesem sobre o crescimento e exacerbem as megaameaças no médio prazo, o futuro pode ser brilhante se pudermos evitar um cenário distópico em que as megaameaças se alimentam destrutivamente umas das outras. Contudo, a nossa primeira prioridade será sobreviver às próximas décadas em meio à instabilidade e ao caos.

*Nouriel Roubini é professor de economia na Stern School of Business da New York University. Autor, entre outros livros, de Megathreats: ten dangerous trends that imperil our future (Little, Brown and Company).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Projeto Syndicate.


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