Ricardo Nunes não escolheu esperar!

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Por SIMONY DOS ANJOS*

O prefeito e sua base na Câmara Municipal já estão promovendo a ofensiva conservadora aos direitos humanos na Cidade de São Paulo

Há pouco mais de um mês escrevi que o Ricardo Nunes é uma ameaça fundamentalista à cidade de São Paulo, no que se refere aos direitos das mulheres. Pois bem, mal assumiu o comando da prefeitura e já colocou seu rosário na vida das e dos adolescentes paulistanos. A prefeitura emitiu um parecer técnico – mantido sob sigilo – garantindo a efetividade do Programa Eu Escolhi Esperar, proposto pelo PL 813/2020 do vereador e Pastor da Igreja Evangélica Quadrangular Rinaldi Digilio (PSL), no combate à gravidez na adolescência. Ao ver essa proposta de lei, me remeti à minha infância e adolescência, enquanto uma pessoa evangélica.

Na igreja, sempre ouvi sobre esperar para iniciar a vida sexual, assim como uma porção de adolescentes ouvem nas Igrejas todos os finais de semana. Essa prática de reiterar a abstinência como ética de vida, não impediu que boa parte de adolescentes e jovens tivessem relações sexuais, não impediu que conhecidas minhas engravidassem, ou pior, que não tivessem escolha ao serem abusadas. Esse tipo de iniciativa culpabiliza a pessoa que não mantém a castidade, a colocando como moralmente reprovável e silencia as meninas e meninos que possam ter sofrido algum tipo de violência sexual, uma vez que a violação será entendida como pecado, e, portanto, objeto de juízo moral e religioso.

Juízo moral que muitas vezes se efetua em muitas esferas sociais: legislativas, jurídicas e educativas. Expressões como “você tentou fechar as pernas para impedir o abuso?”, “ah, mas se ela era abusada desde os 6 anos, ela estava acostumada”, “mas com que roupa ela estava?”, ‘se estivesse em casa isso não teria acontecido” etc. Falas essas que foram dirigidas a meninas que foram abusadas e que são totalmente excluídas por este PL.

O PL que institui um programa educacional sobre sexualidade para adolescentes, simplesmente ignora o abuso sexual de meninas abaixo de 14 anos. E isso é extremamente problemático, pois credita o problema social da gestação precoce à escolha das meninas e meninos. O PL ignora que em 2015: 29.979 registros de abusos contra meninas abaixo de 19 anos, sendo 8.541 vítimas de 10 a 14 anos. Em 2016: 32.704 registros, sendo 9.477 vítimas de 10 a 14 anos. Em 2017: 39.471 registros, sendo 11.019 vítimas de 10 a 14 anos e em 2018: 45.219 registros, sendo 12.599 vítimas de 10 a 14 anos (Segundo o Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais da UFJF).

Um projeto que prima por atender adolescentes, formar professores e profissionais da saúde em relação a prevenção de gravidez na adolescência, tem que versar sobre acolhimento à vítima de abuso sexual, como identificar alguém possa ser vítima e ainda, orientar adolescentes e jovens sobre abuso. Deve ter por objetivo o enfrentamento às Infecções sexuais transmissíveis (ISTs) e como evitá-las – e o PL não se preocupa com esse cenário, ele apenas institui um programa cujo objetivo é o proselitismo religioso em relação à sexualidade, com dinheiro público.

O ponto é que usar a abstinência como política pública, vai apenas reforçar a culpa de quem não esperou, ou foi violada sendo impossibilitada de esperar. Obviamente, em uma sociedade segura e que a educação sexual e de gênero seja oferecida de maneira séria nas escolas e UBSs, a escolha da abstinência é possível, contudo sem prejudicar a informação sobre a contracepção, sobre o funcionamento do corpo e de como ser responsável em relação ao seu corpo e ao corpo do outro.

Não se pode esquecer que a política de abstinência já defendida pela Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos Damares Alves, foi cientificamente comprovada ineficaz. Um artigo publicado no British Medical Journal, analisou 13 pesquisas feitas com adolescentes entre 10 e 21 anos e confirmou que o impacto dessas políticas é inócuo. O estudo demonstrou que esses programas além de não prevenirem gestações precoces e Ists, não oferecem uma rede de apoio às e aos adolescentes que já iniciaram a vida sexual.

Juridicamente, segundo a nota técnica do Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos das mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, esse projeto fere dois princípios constitucionais: o da laicidade e da impessoalidade (artigos 19 e 37 da Constituição Federal). O da impessoalidade, pois o PL leva o nome de uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, chamada Instituto Eu Escolhi Esperar, ou seja, com a aprovação deste PL o município passa a promover um interesse privado, com dinheiro público. O da laicidade, pois essa mesma instituição é dirigida por pastores evangélicos e promove dogmas religiosos em relação ao sexo. Segundo a nota, esse PL fere o Estado Laico, uma vez que o “Estado laico não pode se deixar influir por uma religião especifica”.

Por fim, o PL estimula que organizações privadas recebam um dinheiro que poderia ser investido nos programas já existentes no Plano Municipal de Saúde e de Educação, com a estrutura que é garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, baseados em pesquisa, na ciência e na laicidade. A aprovação desse PL significa que Nunes e sua base na Câmara Municipal já estão promovendo a ofensiva conservadora aos direitos humanos na Cidade de São Paulo. A defesa do Estado Laico urge, a ciência, a racionalidade da gestão dos recursos públicos está ameaçada pelos fundamentalismos religiosos. Ricardo Nunes não escolheu esperar e já deu início a sua ofensiva conservadora.

*Simony dos Anjos é doutoranda em antropologia na USP. É integrante do Coletivo “Evangélicas pela Igualdade de Gênero”, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.

 

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