A atualidade da sofística

Maria Bonomi, Menina Trombuda, xilogravura, 50 x 25 cm, 1964.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BENTO PRADO JR.*

Comentário sobre o livro “Ensaios Sofísticos”, de Barbara Cassin

“A verdadeira filosofia ri da filosofia” (Pascal).

Sob o título de Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin nos oferece quatro ensaios que não se limitam a restituir, com os mais finos instrumentos da filologia, o estilo e a vocação da sofística na idade clássica grega ou perto do fim da Antiguidade. Seus ensaios fazem, é certo, também, obra de história, devolvendo a sofística a seu horizonte nativo. Fazem-na, ainda, ao sugerir uma leitura diferente daquela a que somos levados, sem refletir, pela inércia de uma antiqüíssima tradição: a tradição platônico-aristotélica, que expulsa o sofista para fora dos limites do sentido e da humanidade.

Mas não se trata, apenas, de fazer justiça aos sofistas, ou de acrescentar, generosamente, mais um dossiê ao longo processo de “recuperação”, já duplamente secular, desencadeado por advogados como Hegel, Burkhardt, Grote, Gomperz, Dupréel e Untersteiner. Trata-se, antes, da maneira mais perversa e sutil, de mostrar a permanência dos antigos mecanismos de exclusão, nas entrelinhas dos textos mais ou menos recentes, que promovem a restauração da dignidade do sofista e da sofística.

Reflitamos sobre o título deste belo livro. O adjetivo “sofístico” não qualifica somente o objeto mais visível dos ensaios. Sugestão que poderia indignar o leitor: “Mas, como! Então o autor confessa, já na capa de seu livro, que faz obra de sofista?”. Sim e não, caro leitor. Entendamo-nos: mais que trabalho filológico, este livro é trabalho de uma filosofia que opera nos limites da própria filosofia, lá onde ela se comunica com seu outro ou com a não-filosofia (política, literatura, psicanálise e, no limite, o mundo real).

O objeto dos ensaios não é apenas a “sofística histórica”, tão distante de nós no tempo, mas sobretudo a sofística entendida como “efeito estrutural” da própria filosofia. Se a definição platônico-aristotélica da filosofia, na esteira parmenidiana, como captura “lógica” do ser, pôde manter-se viva através dos séculos, não é de espantar que tenha mantido em vida o seu outro ou seu inimigo (definido, desde o início, como pseudos, isto é, mentira, falsidade, simulacro, fantasma), algo como um “ponto cego” central, sem o qual o claro olhar do filósofo perde a sua lucidez ou os limites de seu campo de visão.

Na realidade, o alvo deste livro é a partilha ou o corte entre o racional e o irracional, coextensivo a toda a história da filosofia. Tudo se passa como se a filosofia clássica grega tivesse imposto para sempre uma concepção decisória da razão, que a transforma num instrumento de corte. Lembremo-nos de que Platão já definia a dialética ou a filosofia (em oposição à sofística) por comparação com o bom açougueiro: um corta o boi segundo suas “articulações naturais”, o outro divide as ideias (ou o mundo real) segundo uma sintaxe muda, mais velha que nossa linguagem demasiado humana.

Mas, para recortar honestamente as coisas com o uso de tesouras lógico-lingüísticas, é preciso supor um corte claro e absoluto, anterior a qualquer questão, entre palavras e coisas. Para que as palavras descrevam as coisas com adequação, sem ambigüidade ou contradição, é preciso que elas se situem como que à distância das coisas, é preciso que algo como um céu lógico-lingüístico dê a coesão que falta essencialmente a nossa pobre terra sublunar.

Uma exigência que rouba, de algum modo, a espessura de nossa fala terrena. Aquela mesma espessura que se revela no Nomos ou no consenso político que não carece de nenhuma base “natural”, na produtividade do romance e da poesia que constituem livremente o mundo, ou na produtividade do puro significante da “lógica do desejo” (em Lacan, certamente, senão em Freud).

Reconhecer a efetividade da linguagem, ou a eficácia de sua materialidade (para além da sua dimensão semântica) não significa necessariamente mergulhar nas trevas externas da irrazão. Significa situar-se entre a filosofia e a não-filosofia, entre o filósofo e sua sombra, na transição entre o dia e a noite, reconhecendo, com o próprio Platão, que há semelhanças que põem em perigo a identidade das essências, “como aquela entre o lobo e o cão, o mais selvagem e o mais domesticado”. Um “ar de família” visível nas fisionomias do filósofo e do sofista.

*Bento Prado Jr. (1937-2007) foi professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros livros, de Alguns ensaios (Paz e Terra).

Publicado no jornal Folha S Paulo, em 30 de março de 1991.

Referência


Barbara Cassin. Ensaios sofísticos. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo, Siciliano, 1990.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Claudio Katz Manuel Domingos Neto Paulo Fernandes Silveira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Matheus Silveira de Souza Flávio Aguiar Marjorie C. Marona Gilberto Maringoni Slavoj Žižek Leda Maria Paulani Luiz Carlos Bresser-Pereira Dennis Oliveira Leonardo Boff Tadeu Valadares Jean Pierre Chauvin Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna Mariarosaria Fabris Valerio Arcary Atilio A. Boron Luciano Nascimento Kátia Gerab Baggio João Lanari Bo Érico Andrade Luiz Renato Martins Eugênio Trivinho João Adolfo Hansen Armando Boito Osvaldo Coggiola Renato Dagnino Tarso Genro Lincoln Secco Vinício Carrilho Martinez Luiz Marques Heraldo Campos Andrés del Río Eleutério F. S. Prado Ladislau Dowbor Paulo Nogueira Batista Jr José Dirceu Marcelo Guimarães Lima Plínio de Arruda Sampaio Jr. André Singer Samuel Kilsztajn Paulo Martins Rodrigo de Faria Carla Teixeira Francisco Pereira de Farias Leonardo Sacramento Marilena Chauí Rubens Pinto Lyra Luís Fernando Vitagliano Tales Ab'Sáber Yuri Martins-Fontes Priscila Figueiredo Sandra Bitencourt Antonino Infranca Fernão Pessoa Ramos Eleonora Albano André Márcio Neves Soares José Micaelson Lacerda Morais Alexandre Aragão de Albuquerque Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Sette Whitaker Ferreira Julian Rodrigues Jean Marc Von Der Weid Chico Alencar Juarez Guimarães Sergio Amadeu da Silveira Denilson Cordeiro Vanderlei Tenório Gerson Almeida Paulo Sérgio Pinheiro Mário Maestri Igor Felippe Santos Antonio Martins João Paulo Ayub Fonseca Milton Pinheiro Afrânio Catani Lorenzo Vitral Thomas Piketty Antônio Sales Rios Neto Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Musse Ricardo Abramovay Andrew Korybko Salem Nasser Bento Prado Jr. Luis Felipe Miguel Liszt Vieira Remy José Fontana Jorge Branco Boaventura de Sousa Santos Marcus Ianoni Otaviano Helene Flávio R. Kothe Maria Rita Kehl Rafael R. Ioris Michel Goulart da Silva Henri Acselrad Eugênio Bucci Chico Whitaker Henry Burnett Gilberto Lopes Anselm Jappe Alexandre de Freitas Barbosa Caio Bugiato Bruno Machado Bernardo Ricupero Airton Paschoa José Luís Fiori Carlos Tautz Ronaldo Tadeu de Souza Leonardo Avritzer Ari Marcelo Solon Daniel Brazil Luiz Eduardo Soares Dênis de Moraes Elias Jabbour José Raimundo Trindade Michael Löwy Eliziário Andrade Fábio Konder Comparato Marcos Aurélio da Silva Marcos Silva Fernando Nogueira da Costa João Feres Júnior Francisco Fernandes Ladeira Ricardo Fabbrini Everaldo de Oliveira Andrade José Costa Júnior Vladimir Safatle Alexandre de Lima Castro Tranjan José Geraldo Couto Ronald León Núñez Ricardo Antunes Paulo Capel Narvai Eduardo Borges Francisco de Oliveira Barros Júnior Celso Frederico Lucas Fiaschetti Estevez Walnice Nogueira Galvão Daniel Costa Anderson Alves Esteves Benicio Viero Schmidt Berenice Bento José Machado Moita Neto Jorge Luiz Souto Maior Marcelo Módolo Manchetômetro João Carlos Loebens Luiz Bernardo Pericás Luiz Roberto Alves Celso Favaretto Michael Roberts Daniel Afonso da Silva Annateresa Fabris Ronald Rocha Gabriel Cohn João Carlos Salles

NOVAS PUBLICAÇÕES