As mutações do presente

Imagem: Saeid Anvar
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

E as eleições chilenas e o processo político-eleitoral brasileiro

A partir dos resultados das eleições chilenas que elegeram o jovem militante de esquerda Gabriel Boric podemos fazer – por analogia – uma reflexão sobre o nosso processo político-eleitoral, para entendermos o que tem de “universal” o processo chileno. Isso é importante para as esquerdas que estarão juntas, em um eventual segundo turno, e que – seguramente – deverão unir-se para governar na democracia estraçalhada pelo ódio ultraliberal, tanto aqui como lá, siamês da psicopatia da extrema direita fascista, num assediado pela violência miliciana e pela destruição ambiental sem precedentes.

As mudanças na base produtiva do sistema do capital, a destruição do sistema de proteção social-democrata e a diluição “liberal” das regras de proteção ao trabalho vivo – prestado de forma dependente e juridicamente subordinada – resultaram (aqui e lá no Chile) no novo mundo da distopia liberal: é uma nova e pior vida comum, mais anárquica e “líquida”, na qual as classes trabalhadoras organizadas, em que pese a bravura das suas lutas, perderam o protagonismo dirigente e os partidos de esquerda, em maior ou menor grau, não atentaram que estas mudanças na materialidade social alteraram as formas e os conteúdos comunicacionais, a linguagem política do senso comum e as maneiras pelas quais as novas coletividades se organizam e auto-organizam, nas redes de relacionamento e em nichos de desencanto com “tudo que aí está.”

Jovens, mulheres, novos atores sociais e culturais, novas atividades laborais de sobrevivência, informalidades cruéis e alternativas, surgiram com novas demandas econômicas, de gênero e ambientais, em conjunto com novos movimentos sociais e etnias historicamente espoliadas. São mudanças que alteraram a hierarquia entre as classes – de opressivas para mais opressivas e de relações mais subordinadas no processo de produção para relações mais controladas pelo resultado – que atingiram em cheio os velhos modos de fazer política. As organizações tradicionais – políticas e corporativas – que se apresentavam como “representações” das classes trabalhadoras, além de mostrarem a fraqueza do sindicalismo tradicional para enfrentar a épica devastação neoliberal, negativa da proteção ao trabalho clássico da Segunda revolução Industrial, demonstraram uma certa irrelevância das formas parlamentares tradicionais do “fazer político.”

Todos os países, sejam os integrantes do primeiro nível do sistema capitalista global, sejam aqueles do segundo nível, têm algo a ver com o que aconteceu no Chile, para aprender e considerar as especificidades econômicas, culturais e políticas de cada formação social. Ocorre que o presente já é outro e mesmo o passado não é mais o que foi descrito pela ciência política contemporânea. As mutações fortes do presente mudam os passados petrificados pela teoria.

A fé irracional no mercado é um atributo da direita, que não se incompatibiliza necessariamente com o fascismo. É uma fé que permite sacrificar os valores da democracia à autoridade ditatorial, que aqui busca integrar – em momentos de crise- os interesses do capitalismo “selvagem” e da elegância financista da Faria Lima, com os torturadores no Poder e, se necessário, conviver com o negacionismo e com o genocídio “sanitário”, se isso mantiver a bolsa em alta e o lucro especulativo produzindo fortunas.

A “fé” na democracia e na República, ao contrário, busca a sua validade ético-moral e política, portanto, na igualdade e na solidariedade, entre os homens e as mulheres que se movem tanto dentro, como fora do mercado, valorizando-se pelas suas peculiaridades humanas, que foram adquiridas fora do mercado, que tanto podem fazê-los acreditar em algo, perder a fé, como seguir acreditando com dúvidas. A fé irracional no mercado autoriza, como se vê no Brasil, a naturalização da morte e o bloqueio das instituições democráticas do Estado, mas a fé na democracia e na República é necessariamente dialógica, porque não aceita o apelo à morte, no horizonte como solução para os enigmas da vida presente. A que passado se reportarão estas pessoas? Aos instintos selvagens da espécie ou a novas utopias da igualdade e da solidariedade humana? A base bolsonarista já resolveu sua escolha com a primeira hipótese.

O que divide o campo bolsonarista do campo democrático no Brasil – nos dias que correm até a data das eleições – é muito mais do que o “político”, em sentido estrito. Trata-se de uma posição de princípio sobre o “que é o humano” e o que se “rejeita” – liminarmente – como solução para responder às dissidências entre os humanos em cada momento específico da História. Os que (1) unem o mercado ao fascismo são diferentes dos que (2) simplesmente defendem uma sociedade de mercado, mas são opostos aos que (3) defendem os valores supremos da solidariedade e da igualdade, para submeter o mercado aos interesses universais dos humanos.

Esta divisão e a compreensão destas “três especificidades” políticas distribuídas entre as classes sociais no país, são a base de um pensamento através do qual se pode pensar na Frente comum contra o fascismo, em cada país. No Brasil, dessa base de entendimento comum poderá brotar a proposta de uma frente eleitoral capaz de enfrentar – ao mesmo tempo – o centro da política bolsonarista de caráter fascista (que se identifica com a morte) e com a “longa manus” da burguesia ultraliberal (que endeusa o mercado) e que faz dele faz a sua Igreja mortífera.

A primeira lembrança que me veio à mente, quando comecei este artigo, foi uma carta de 1938 (informação de Adorno em “Aspectos do novo radicalismo de direita”) escrita pelo liberal Wilhelm Röpke, que junto com Friedman, Hayek, Von Mises, foi um dos fundadores da Sociedade de Mont-Pèlerin (elite intelectual da direita e absolutista do mercado), que disse de maneira apologética: “as pessoas devem se habituar ao fato de que há também uma democracia presidencial, autoritária sim – horrible dictum – uma democracia ditatorial”.

A segunda lembrança colho do que presumo seja o livro mais recente de Leonardo Padura (“Como poeira ao vento”), no qual o enigma proposto por Clara – personagem que reavalia os seus anos de inocência na revolução cubana – que propõe o seguinte: “Acreditar sem duvidar e depois perder a fé, ou manter a fé e continuar acreditando apesar das dúvidas(…)”. A posição dos liberais de Röpke permite pensar, na sua avaliação como racionalidade concreta, que o mercado – se necessário – deve sufocar com sangue a democracia, mas que o enigma que desafia Clara, na verdade, pergunta se é possível acreditar sem duvidar.

A resposta aos liberais do Röpke foi dada por Hitler, com seus campos da morte, mas ao enigma de Clara, Marx já respondera ao dizer que um dos seus aforismos prediletos era, segundo seu biógrafo Franz Mehring, “deve-se duvidar de tudo”. O Humanismo celebra, pois, o “cogito”, e o liberalismo – tendencialmente fascista – celebra sempre a “força”, para poder chegar à morte.

Uma frente eleitoral para enfrentar a política genocida de Bolsonaro e depois para governar com um programa democrático e republicano, em defesa da vida contra a fome, em defesa da democracia contra o fascismo, em defesa da soberania contra os alinhamentos automáticos aos países hegemônicos, é o ponto de partida da recuperação da dignidade da política e da decência de governar para o povo concreto do Brasil, com as indagações de Clara. E com as respostas do velho Marx, que fundem na dúvida estratégia e tática, num só ato de devolução da soberania popular.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eduardo Borges Caio Bugiato Denilson Cordeiro Antonino Infranca Ricardo Musse Annateresa Fabris Marjorie C. Marona Luciano Nascimento Lucas Fiaschetti Estevez Mário Maestri Chico Whitaker Marcos Silva José Luís Fiori Carla Teixeira Boaventura de Sousa Santos Afrânio Catani Armando Boito Francisco de Oliveira Barros Júnior Gilberto Lopes José Machado Moita Neto Priscila Figueiredo João Adolfo Hansen Alysson Leandro Mascaro Fábio Konder Comparato Manchetômetro Luiz Bernardo Pericás Benicio Viero Schmidt Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Antonio Martins Andrés del Río Yuri Martins-Fontes Francisco Pereira de Farias Matheus Silveira de Souza Ricardo Abramovay Gerson Almeida Érico Andrade Ronald Rocha Tales Ab'Sáber Rodrigo de Faria Tarso Genro Jean Marc Von Der Weid Daniel Afonso da Silva Dennis Oliveira João Carlos Loebens Otaviano Helene Valerio Arcary André Singer Rubens Pinto Lyra Leonardo Avritzer Marcelo Guimarães Lima Fernando Nogueira da Costa Luiz Werneck Vianna Heraldo Campos Mariarosaria Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Marcus Ianoni Eleutério F. S. Prado Juarez Guimarães Remy José Fontana Igor Felippe Santos Daniel Costa Anselm Jappe Berenice Bento Paulo Nogueira Batista Jr Marcos Aurélio da Silva Celso Favaretto Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Sette Whitaker Ferreira José Micaelson Lacerda Morais Jorge Luiz Souto Maior Henri Acselrad Daniel Brazil Ronald León Núñez Julian Rodrigues Luis Felipe Miguel Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Fabbrini Ronaldo Tadeu de Souza Francisco Fernandes Ladeira Valerio Arcary Manuel Domingos Neto Leonardo Boff Paulo Sérgio Pinheiro Vinício Carrilho Martinez João Lanari Bo Fernão Pessoa Ramos Vanderlei Tenório Chico Alencar Antônio Sales Rios Neto Leonardo Sacramento Sergio Amadeu da Silveira Liszt Vieira Osvaldo Coggiola Jorge Branco João Feres Júnior Salem Nasser Kátia Gerab Baggio Ladislau Dowbor Everaldo de Oliveira Andrade Sandra Bitencourt Luís Fernando Vitagliano Michael Löwy Paulo Capel Narvai José Geraldo Couto Michael Roberts João Paulo Ayub Fonseca Atilio A. Boron Gabriel Cohn Alexandre de Lima Castro Tranjan José Raimundo Trindade Ricardo Antunes Marilena Chauí Celso Frederico Rafael R. Ioris Luiz Marques Carlos Tautz Bruno Machado Eugênio Trivinho Lorenzo Vitral Milton Pinheiro Flávio R. Kothe Luiz Renato Martins Leda Maria Paulani Samuel Kilsztajn José Dirceu Ari Marcelo Solon Gilberto Maringoni Walnice Nogueira Galvão Airton Paschoa José Costa Júnior Vladimir Safatle Luiz Roberto Alves Bento Prado Jr. Claudio Katz Eugênio Bucci Renato Dagnino Marilia Pacheco Fiorillo Flávio Aguiar Henry Burnett Paulo Martins Michel Goulart da Silva Tadeu Valadares Slavoj Žižek Thomas Piketty Elias Jabbour Jean Pierre Chauvin Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Fernandes Silveira Dênis de Moraes Marcelo Módolo Eliziário Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lincoln Secco André Márcio Neves Soares João Carlos Salles Luiz Eduardo Soares Andrew Korybko Bernardo Ricupero Eleonora Albano

NOVAS PUBLICAÇÕES