Letalidade social

Imagem: Johannes Plenio
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LARA FERREIRA LORENZONI & MARCELO SIANO LIMA*

Reflexões sobre o terror da necropolítica brasileira

Existe pena de morte no Brasil? Formalmente, no plano prescritivo, não. Material e concretamente, depende: se o indivíduo tiver a cor errada no local e hora certos, sim. Não importa se a pessoa praticou ato violador da lei, se colocou em risco ou atentou contra a vida/integridade física de alguém. Se estava armado, desarmado, de pé, sentado, algemado e rendido. A questão não é sobre o que se faz: é sobre o que se é.

São muitos e variados “casos isolados” nesse sentido perpetrados pelo braço estatal responsável pela chamada segurança pública. Não são coincidências. Todos têm uma dimensão política e representam um projeto histórico, colonial e racista de poder, que passa necessariamente pelo extermínio de determinados grupos previamente desumanizados e considerados de vida indesejada, portanto, passíveis de aniquilamento, físico ou virtual. No contexto brasileiro, a população negra é o alvo número um desse massacre, que, ressaltamos, é parte de uma política não escrita de Estado, uma necropolítica.

E não se avente qualquer desvio de ordem mental, qualquer perversidade patológica dos executores. Há uma estrutura genocida de sociedade que ultrapassa a condição individual. Estamos todos nela inseridos. É o projeto de uma civilização calcada na barbárie em que apenas alguns, os escolhidos, merecem viver, enquanto outros inevitavelmente devem ser colocados no altar sacrificial do deus mercado.

Afinal, sabe-se: os recursos materiais são escassos, as benesses da modernidade não são para todos e os direitos e garantias fundamentais estão devidamente privatizados, embalados em plástico como produtos comercializáveis para quem pode pagar. Ao mesmo tempo em que se oferecem, negam-se, de forma cínica, a Constituição, as leis e todas as maravilhas, objetos mágicos e luzes de led do capitalismo para a grande massa dos excluídos.

Nessa conjuntura tétrica, execuções extrajuduciais e hiperencarceramento são, de fato, expedientes ordinários dos órgãos de segurança pública e dos operadores do direito. E isso é legitimado pela forma complacente com que se comporta parte considerável do corpo social. O extermínio não só é tolerado, mas desejado e enaltecido enquanto lenitivo para uma sociedade adoecida pelo medo, pelo ódio e pela vingança. Como já disse Eduardo Galeano, “não há valium que possa atenuar tanta ansiedade nem prozac capaz de apagar tanto tormento. A prisão e as balas são a terapia dos pobres”.

Ora, o que são algumas centenas de corpos humanos empilhados todos os dias nas ruas e nos campos? Apenas mais uma parte da paisagem. A letalidade de nossas polícias não é somente delas, e sim, de todos e todas envolvidos na arquitetura branca colonizadora, na medida em que a violência é elemento estruturante de nossa sociabilidade.

Ao Estado e suas agências de segurança compete, nesse teatro de horrores, o papel de verdugos imediatos, porém, o algoz igualmente nos habita, eis que a consumação do suplício é a manifestação final de uma lascívia sanguinária e coletiva latente. Sendo assim, é uma mortandade previamente respaldada. Por isso, em vez de letalidade policial, acreditamos ser mais precisa a expressão “letalidade social”. Ninguém aperta o gatilho sozinho, a câmara de gás está a céu aberto para a vista e regozijo de todos, nas palmas das mãos pelo feed do instagram ou como prato principal servido pelo noticiário televisivo da hora do almoço.

Na sociedade da guerra, sobre o “inimigo” recai, de forma cruel, sistemática e em proporções dignas de um industrialismo fordista, toda a pujança do Estado e de suas agências. Lei e morte são forças intimamente aliadas nesse espetáculo mórbido em que, atuando pelas vias fétidas do direito penal subterrâneo, pequenos soberanos armados decidem quem merece viver e quem deve morrer.

Somos uma sociedade, em termos civilizacionais, perdida? Bem, não cremos, mas afirmamos que somos, sim, uma sociedade que, por não assumir as profundas e graves diferenças e as cruéis características de sua formação, por não ter Memória, por se negar a reconhecer a brutalidade como elemento constituinte, se afasta do campo de reflexão e, portanto, da necessária inflexão: a ruptura com o ciclo de horror e a implementação da segurança dos direitos.

A banalização do mal precisa ser superada como paradigma da sociabilidade e das agências do Estado brasileiro. Para a concretização dessa redenção histórica, devemos aprofundar não só a compreensão da luta de classes como o motor de toda e qualquer transformação, mas também o racismo e o genocídio enquanto insígnias primordiais da formação social brasileira.

Reconhecer o outro como fim em si mesmo, com valor em si mesmo, colocá-lo na condição de sujeito, pautar a vida como pedra angular, a existência biológica e simbólica de todas, todos e todes. Esse é o primeiro passo em direção ao grande salto imaginativo nos paraquedas coloridos de um mundo de vida, igualdade e inclusão.

*Lara Ferreira Lorenzoni, advogada, é doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

*Marcelo Siano Lima é doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • Donald Trump e o sistema mundialJosé Luís Fiori 21/11/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES