Por CAIO BUGIATO*
Considerações sobre o recente encontro de Xi Jinping e Vladimir Putin.
A ofensiva ocidental liderada pelos Estados Unidos via expansão da OTAN até as fronteiras de países não-alinhados à Washington não fustiga apenas os russos. A visita da então presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, em 2022 à ilha de Taiwan foi vista como provocação por Pequim, que considera a ilha uma província rebelde. Recentemente, o presidente dos EUA Joe Biden anunciou, em uma base naval na Califórnia, ao lado dos primeiros ministros britânico e australiano, a aceleração do envio de submarinos nucleares a Austrália. O envio faz parte da parceria de defesa (pacto Aukus) entre os três países, sob alegações de conter planos chineses de domínio naval no Indo-Pacífico e de retomada de Taiwan.
Vale mencionar ainda a tentativa de reviver a aliança anti-China, criada em 2007, Diálogo de Segurança Quadrilateral, ou Quad, fórum formado por Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália. Entre estas e outas medidas da política externa estadunidense, as tensões no pacífico apontam para um processo de ucranização de Taiwan: dadas as relações atribuladas da ilha com a potência rival dos EUA, o planejamento de Washington é transformá-la em fantoche do ocidente para desestabilizar e demolir a ascensão chinesa.
Em meio à guerra na Ucrânia, a China tem demonstrado uma posição de neutralidade sobre o conflito, a despeito das parcerias com a Rússia desde antes da guerra. Contudo, um dos grandes pontos de concordância entre o governo Putin e o governo Xi Jinping é o incomodo com a ofensiva mundial estadunidense, em vários aspectos. Os chineses acompanham de perto o conflito na Ucrânia entre a OTAN e a Rússia. Estão cientes das escaladas da guerra, com os estrondosos auxílios econômicos e militares dos ocidentais ao governo Zelensky, sobretudo com o recente acordo de envio de tanques de guerra. Consideram, inclusive, que a derrota russa é a manutenção da ordem mundial atual, em que a autonomia dos Estados é acossada pelo imperialismo estadunidense.
Pois bem, Xi Jinping visitou Moscou entre 20 e 22 de março a convite do governo de Vladimir Putin para debater cooperação estratégica entre os dois países. A China é a terceira maior potência militar do mundo – e detentora de armas nucleares –, atrás de Estados Unidos e Rússia. É importante lembrar que o Estado chinês não se configura apenas como contendedor da supremacia estadunidense, ele propõe uma alternativa ao capitalismo: o socialismo com características chinesas.
No 19º Congresso Nacional do Partido Comunista em 2017 o governo chinês anunciou uma posição mais preponderante na política internacional: a promoção modernização socialista até 2035 e até 2049, data dos cem anos da Revolução Chinesa, almeja celebrar um status de país “poderoso, próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e belo”. Esta nova aproximação entre russos e chineses já era motivo de preocupação dos ocidentais, que a discutiram nas recentes conferências de segurança da OTAN.
No encontro sino-russo houve entendimentos com o intuito expandir a parceria econômica e fortalecer a cooperação militar, diante das ameaças de sanções dos EUA caso a China forneça armas à Rússia. Em perspectiva comum de contrabalançar os Estados Unidos e seus aliados ocidentais, Xi Jinping e Vladimir Putin assinaram um total 14 declarações, protocolos, memorandos e acordos, além de proferirem discursos alinhados aos documentos. Em geral, estabeleceram compromissos sobre cooperações bilaterais, como para aumentar o comércio, que cresceu 30% em 2022 e gira em torno de US$ 200 bilhões, dos quais dois terços foram feitos em yuans e rublos, afastando a hegemonia do dólar.
Estabeleceram também compromissos em expandir a cooperação agrícola a fim garantir a segurança alimentar, desenvolver logística e infraestrutura e aumentar a cooperação no intercâmbio de energia, minerais, metais e produtos químicos, além de cooperação nas áreas de tecnologia, tecnologia da informação e inteligência artificial. Um dos projetos trata de um segundo gasoduto da Rússia para China, a ser construído na Sibéria e operar através da Mongólia, incrementando as exportações do gás natural russo. Igualmente, os governos concordaram com um programa de cooperação de longo prazo em energia atômica. Ademais, comprometeram-se com uma cooperação midiática para compartilhar informações e produzir documentários sobre os países. Um protocolo instituiu um mecanismo para reuniões presidenciais regulares.
Do ponto de vista militar, a cúpula concordou em desenvolver intercâmbio e cooperação militar, aumentar a confiança mútua entre suas forças armadas e realizar regularmente exercícios conjuntos e patrulhas marítimas e aéreas. Segundo Xi Jinping, a China fez uma escolha estratégica de acordo com seus próprios interesses fundamentais e nas tendências predominantes no mundo, indicando que os dois Estados compartilham o compromisso com um mundo multipolar. Apesar da parceria militar, os governos se opuseram a uma aliança do tipo político-militar e criticaram o pacto Aukus e a expansão militar da OTAN.
Sobre a guerra na Ucrânia, Vladimir Putin elogiou a proposta de paz feita pelos chineses no mês passado e enfatizou que seus elementos podem ser considerados como base para um acordo quando o Ocidente e Kiev estiverem prontos. Mas apontou que Kiev não está em condições para discutir a paz, pois seus fiadores ocidentais não querem qualquer cessar-fogo na Ucrânia, querem a destruição da Rússia com esta guerra.
Especificamente, chama atenção o documento que indica uma nova era multipolar, a Declaração Conjunta da República Popular da China e da Federação Russa sobre o Aprofundamento da Parceria de Coordenação Estratégica Abrangente para a Nova Era. Vale a pena reproduzir um trecho:
“As duas partes salientaram que consolidar e aprofundar a Parceria Estratégica Global de coordenação China-Rússia para uma nova era é uma escolha estratégica feita por ambas as partes com base nas suas respectivas condições nacionais, que está de acordo com os interesses fundamentais dos dois países e dos seus povos, de acordo com a tendência de desenvolvimento dos tempos, e não está sujeita a influência externa. As partes o farão:
(i) guiadas pelo consenso alcançado pelos dois chefes de Estado, asseguraram que as relações bilaterais avançarão sempre na direção certa.
(ii) Devemos dar um apoio firme um ao outro na salvaguarda dos nossos respectivos interesses fundamentais, sobretudo em questões de soberania, integridade territorial, segurança e desenvolvimento.
(iii) Apoiar o princípio do benefício mútuo, continuar a aprofundar e expandir a cooperação prática no processo de modernização, alcançar um desenvolvimento e prosperidade comuns e beneficiar os povos chinês e russo.
(iv) Promover a compreensão mútua e a amizade entre os dois povos e consolidar continuamente na base social e na opinião pública a amizade entre os dois países durante gerações.
(v) Promover a multipolarização do mundo, a globalização econômica e a democratização das relações internacionais e promover o desenvolvimento da governança global numa direção mais justa e razoável”.
“Os dois lados salientaram que os países têm histórias, culturas e condições nacionais diferentes, e cada um tem o direito de escolher independentemente o seu caminho de desenvolvimento. Não há “democracia” que seja superior aos outros. Ambos os lados se opõem à imposição de valores nacionais aos outros, opõem-se ao uso da ideologia para traçar linhas, opõem-se à narrativa hipócrita da chamada “democracia contra o autoritarismo”, e opõem-se ao uso da democracia e da liberdade como pretexto e instrumento político para exercer pressão sobre outros países e sobre a política”.
Claramente a multipolaridade está em oposição unipolaridade liderada pelos Estados Unido. Manifestam seus descontentamentos com a ordem internacional ao falar sobre democratização das relações internacionais e sobre governação global. Obviamente entendem que as Nações Unidas precisam de reformas, assim como instituições internacionais como o Banco Mundial, o FMI, a OMC e a OMS. Opõem-se à imposição de “liberdade” e “democracia” pelo imperialismo ocidental.
Como desfecho do encontro, Xi Jinping convidou o presidente Vladimir Putin a visitar Pequim ainda em 2023, no 3º Fórum do Cinturão e Rota para Cooperação Internacional. Falando com repórteres, o presidente chinês disse ao russo que mudanças estão acontecendo agora que não acontecem há 100 anos e ambos estão movendo essas mudanças juntos.
*Caio Bugiato é professor de ciência política e relações internacionais da UFRRJ e do programa de pós-graduação em relações internacionais da UFABC.