A força que brota da opressão

Imagem: Phong Vo
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Por BETH SAHÃO*

Quando mulheres e meninas são violadas em seus direitos, não existe matemática que seja suficiente para traduzir algo que escapa aos dados estatísticos

Thallita da Cruz Fernandes, médica, 28 anos. Bruna Angleri, dentista 40 anos. Jussara Burguz Tonon, dona de casa, 46 anos. O que une os nomes de três mulheres de lugares distintos do território paulista – São José do Rio Preto, Araras e capital – é o mesmo desfecho trágico que tiveram, como vítimas de feminicídios registrados recentemente. Três histórias mudadas drasticamente por quem agiu com o ímpeto de um verdadeiro algoz, que tramou e que agiu sordidamente sob o manto da intimidade e se apropriou do direito de decidir o destino de outra pessoa.

Para muito além de dados estatísticos, Thalita, Bruna e Jussara são nomes, são rostos, são histórias que se sobrepõem à frieza de números que reforçam o quanto estes casos não são a exceção, mas parte de um quadro recorrente de violência manifestada sob os mais diferentes espectros contra a população feminina, sejam mulheres ou meninas. E em que pese a explosão perturbadora das ocorrências em suas múltiplas modalidades – física, psicológica ou sexual –, as reações estão aquém de fazer frente à escalada de uma violência para a qual possivelmente ainda não exista uma classificação que a defina por completo, dada sua brutalidade e covardia.

E, para que esta análise não se fundamente apenas no campo subjetivo da indignação dos casos que se repetem em nosso cotidiano, eis alguns números da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que reafirmam o que infelizmente é dado concreto, e não somente percepção aflorada a partir de mais uma morte que momentamente ocupa os noticiários.

O número de casos de feminicídios aumentou 34% no primeiro semestre de 2023 no estado de São Paulo, na comparação com o mesmo período do ano anterior. Entre janeiro e junho deste ano, foram registrados 111 casos de assassinatos de mulheres em todo o estado. Em 2022, foram 83.

Os dados também mostram que foram registrados 28.117 casos de lesão corporal dolosa contra mulheres, 14% a mais do que o mesmo período em 2022. Já os casos de ameaças contra mulheres também cresceram: 48.728 registros, contra 29.313 em 2022, ou seja, uma alta foi de 66%. E os registros de medidas protetivas cresceram 17 % no primeiro semestre deste ano, em comparação ao mesmo período do ano passado.

E é necessário que se reitere o quanto a violência contra mulheres e meninas envolve um espectro amplo, com indicativos de curvas sustentadas de crescimento em todas as a suas modalidades. Basta tomar como referência a maneira como as Nações Unidas definem a violência contra as mulheres – “qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada” – para se concluir o quanto estamos diante de um quadro perturbador, uma vez que vidas e direitos de uma parcela expressiva da população está sob ameaça constante.

Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, (OPAS), uma em cada três mulheres e meninas de 15 a 49 anos nas Américas sofreram violência física e/ou sexual por um parceiro. Além disso, uma em cada quatro mulheres e meninas com 15 anos ou mais nas Américas já sofreram violência física e/ou sexual por parte de um parceiro. E uma em cada oito mulheres e meninas com 15 anos ou mais nas Américas sofreram violência sexual por parte de um não parceiro.

São números para os quais efetivamente não existe uma matemática que seja de fato precisa, na essência do termo. Afinal de contas, quando enumeramos estes casos, na verdade o que estamos fazendo é mencionando vidas, para as quais nenhuma equação é plenamente exata. Quando mulheres são violadas em seus direitos, quando são assediadas, atacadas, torturadas física ou psicologicamente, violentadas, objetificadas e eliminadas, não existe matemática que seja suficiente para traduzir algo que escapa aos dados estatísticos: a dor, a humilhação, o dano à saúde mental e o medo, fatores que simplesmente não são contabilizáveis.

Por essa razão, como uma forma de reação a esta realidade perturbadora, lançaremos, dia 18 de outubro, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), a Frente Parlamentar Pela Defesa da Vida e Proteção das Mulheres e Meninas. É preciso que haja uma intensa mobilização que se oponha de maneira firme à esta violência que avança, inclusive no estado mais rico do país, e que mantém sob risco constante os direitos da população feminina.

Para muito além de sobreviver

A conquista do Prêmio Nobel da Paz deste ano pela ativista iraniana Narges Mohammadi é mais uma fonte de energia que se propaga para o mundo todo, contra a opressão brutal que visa subjugar a mulher de forma cruel e covarde. Pois como não encontrar inspiração em quem não se curva diante do regime ditatorial de seu país, mesmo há tantos anos apartada de sua família? E que de dentro da prisão, em uma carta enviada ao The New York Times, afirma de forma destemida: “Quanto mais nos prendem, mais forte nos tornamos”.

É do interior da unidade prisional de Evin, onde cumpre sua sentença mais recente, que Narges faz ecoar sua voz. Foi assim, por exemplo, há um ano, quando a jovem Mahsa Amini, de apenas 22 anos, foi assassinada sob custódia da polícia moral do Irã, por supostamente não usar um hijab adequado. A morte de Mahsa desencadeou uma revolta imediata e generalizada – liderada por mulheres – que abalou o país e desafiou a repressão advinda dos aiatolás. Inclusive com uma rebelião na penitenciária onde a agora Nobel da Paz está encarcerada.

Em meio aos tiros das forças de segurança da prisão, explosões e chamas, que resultaram em pelo menos oito mortes, Narges e suas companheiras de luta desafiaram o poder opressor. E, como ela mesmo descreve ao NYT, não se calaram e continuaram a levantar a voz. “As mulheres não vão desistir”, declarou a ativista, com a força das letras que atravessam as grades e ganham o mundo.

Um destemor que indiscutivelmente inspira! E é por Narges Mohammadi, também por Thallita da Cruz Fernandes, por Bruna Angleri, por Jussara Burguz Tonon, e por todas as mulheres e meninas, que temos que seguir em frente, na luta e pela defesa de nossos direitos. Como nos lembra a própria Narges: “Somos movidos pela vontade de sobreviver, quer estejamos dentro ou fora da prisão”.

*Beth Sahão é deputada estadual em São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores.


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