Por ANTÔNIO DAVID*
O doutorado direto não é um demérito, e doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade
1.
No dia 11 de novembro de 2024, foi assinado um protocolo de intenções entre a Capes, a FAPESP e as seis universidades públicas de São Paulo – Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Federal do ABC (UFABC) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – incentivando os programas de pós-graduação com notas 6 e 7 na avaliação da Capes a adotar mudanças no modelo de pós-graduação.
As mudanças em questão alteram de maneira substantiva o funcionamento da pós-graduação stricto sensu, em particular o caráter e os objetivos do primeiro ano do mestrado; mas o ponto que mereceu destaque na imprensa foi o fato de o novo modelo “encurtar o caminho para o doutorado” (O Estado de S. Paulo) ou “acelerar o ingresso no doutorado” (Folha de S. Paulo). É sobre este ponto que quero me deter aqui.
O ingresso diretamente no doutorado a partir da graduação, ou a passagem para o doutorado no exame de qualificação do mestrado, são previstos nas normas de um grande número programas de pós-graduação, nos regimentos e estatutos de diversas universidades, nas normas das agências de fomento e na legislação (LDB, Art. 47, § 2, e resoluções CNE/CES nº 01/2001 e 07/2017), mas não é exatamente uma praxe. Até agora, considera-se que a realização do doutorado direto depende do cumprimento de requisitos especiais, ligados à qualidade e maturidade da pesquisa e do(a) pesquisador(a).
O protoloco assinado na última semana indica que a realização do doutorado direto tende a se tornar usual, ao menos nas universidades públicas paulistas, afinal, a notícia dá conta de que o aluno de mestrado optará entre passar ao doutorado direto ou concluir o mestrado, bastando para tanto tão somente a aprovação no exame de qualificação, que terá lugar ao final do primeiro ano do mestrado.
A proposta está em sintonia com o modelo de pós-graduação adotado em outros países. É o caso da França. Em contrapartida, muitos consideram a realização do mestrado como essencial na formação acadêmica – posição que tem suas razões, inclusive quando se leva em conta um aspecto da realidade brasileira: a péssima formação escolar. Esta é sem dúvida sentida no ensino superior: mesmo nas melhores universidades, observam-se graves deficiências em aptidões básicas, como leitura e escrita. Dessa ótica, o mestrado cumpriria a função de “completar” a formação recebida na graduação, dando aos alunos-pesquisadores a oportunidade de aperfeiçoar tais aptidões, condição elementar do trabalho acadêmico e profissional. Trata-se, como se vê, de tema controverso.
2.
Chama atenção, contudo, um ponto que não foi noticiado, e é sobre este ponto que quero agora me concentrar: refiro-me ao fato de parte das universidades que assinaram o referido protocolo, assim como um grande número de universidades pelo país, adotarem de maneira sistemática e reiterada, em editais de processos seletivos e concursos públicos para o magistério superior, critérios que discriminam, com pontuação menor, doutores que realizaram o doutorado direto em comparação com doutores que realizaram o doutorado precedido do mestrado.
Já tratei deste assunto em outro artigo publicado no site A Terra é Redonda e em outros lugares. Para não me repetir, e manter o foco no protocolo assinado semana passada, tomarei o exemplo da UFSCar. Em 2022 movi uma ação judicial contra a UFSCar por conta do critério adotado em um processo seletivo para professor substituto junto ao Departamento de Filosofia: do total de 10 pontos da pontuação de itens do currículo, o edital atribuía 2 pontos para mestrado.
É óbvio que tal critério implica na exclusão sumária de doutores que realizaram o doutorado direto – esse é meu caso. A ação transitou em julgado, com decisão favorável a mim: os cinco desembargadores do Tribunal Regional Federal da 3ª Região determinaram, por unanimidade, que a UFSCar atribuísse a mim os 2 pontos do mestrado. Com a decisão, fui reclassificado de terceiro para primeiro colocado. A universidade não recorreu à terceira instância.[i]
Não relatarei aqui em pormenor este caso, o que farei futuramente, na oportunidade e pelo meio adequados, ocasião em que tratarei deste e de outros critérios esdrúxulos comumente presentes nos editais, como a exigência de graduação na área. Quero mencionar apenas um dado: no curso do processo judicial, com vistas a defender a manutenção do critério, a UFSCar sugeriu que o mestrado oferece uma “experiência acadêmica significativa” que o doutorado direto supostamente não oferece,[ii] e que quem detém o título de mestre daria “mais demonstrações de realizações” em comparação com aqueles que não o detêm, ou seja, em relação a doutores que realizaram o doutorado direto.[iii]
Fico pensando: como a UFSCar pôde assinar um protocolo de intenções que, de maneira clara e inequívoca, incentiva o doutorado direto, quando, apenas dois anos antes, a mesma UFSCar evocou tais argumentos? Será que a atual gestão da UFSCar considera hoje que o objetivo da pós-graduação é fomentar uma experiência acadêmica menos significativa e com menos demonstrações de realizações? Quero crer que não. Ou, ao contrário, será que essa mesma gestão mudou de posição e resolveu reconhecer a dignidade do doutorado direto? Ou será que estamos apenas diante de uma escandalosa incoerência?
A considerar o processo seletivo aberto no atual momento, com várias vagas para professor substituto (Edital nº 08/2024), a única conclusão a que se pode chegar é que, lamentavelmente, a atual gestão da UFSCar não reviu sua posição: pois, em algumas das vagas do mencionado edital, a universidade manteve exatamente o mesmo critério que o TRF-3 considerou abusivo e ilegal em 2023.
É o caso, por exemplo, do critério de pontuação para as áreas de Teoria Sociológica e Teoria Antropológica: para ambas as vagas, dos 10 pontos da pontuação de itens do currículo, o mestrado vale 1,5. Assim, os doutores nessas áreas (ou em Ciências Sociais) que realizaram o doutorado direto poderão obter no máximo 8,5 na pontuação total, o que na prática equivale à sua eliminação sumária do certame. Em uma palavra, trata-se de um critério que pune o doutorado direto.[iv]
Eu me pergunto: afora o fato de ter ignorado o entendimento e a jurisprudência do TRF-3 neste novo edital, como é possível a UFSCar adotar este critério novamente em novembro de 2024 e, ao mesmo tempo, no mesmo mês de novembro de 2024, a mesma UFSCar assinar um protocolo de intenções que, como é patente para qualquer um, incentiva o doutorado direto? Como é possível tamanha incoerência? Como é possível tamanha contradição?
O doutorado direto não é um demérito, e doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade. Doutores que realizaram o doutorado direto têm a mesma qualificação que doutores que realizaram o doutorado precedido do mestrado, considerados apenas estes quesitos. Nem mais, nem menos. Sobretudo, o doutorado direto foi criado pelas e nas universidades – não foi uma imposição externa – e tem sido incentivado pelas e nas próprias universidades, no pleno gozo de sua autonomia. A assinatura do protocolo pelas seis universidades públicas paulistas é mais um lembrete de que essa incoerência precisa ter fim.
*Antônio David é doutor em filosofia pela USP e doutorando em história social pela mesma instituição. É professor temporário do Departamento de História da Unicamp e professor substituto do Departamento de Filosofia da UFSCar.
Notas
[i]O acórdão pode ser lido na íntegra em https://pje2g.trf3.jus.br/pje/ConsultaPublica/listView.seam (número do processo: 5007231-35.2022.4.03.6100).
[ii] “2.12. E cumpre destacar que em plena consonância com a lei e com as atividades fins a ser realizadas por quem vier a ser contratado por meio do processo seletivo sobre o qual ora se discorre, a UFSCar não dispôs sobre pontuação para a titulação de mestre em área indistinta, mas, pelo contrário, resolveu pontuar especificamente o mestrado em Filosofia – já que a vaga é determinada para professor na área de Filosofia, subárea História da Filosofia Moderna e Contemporânea –, e tudo sob o entendimento de que tal experiência acadêmica é significativa e contribui para o aperfeiçoamento daquele que se dispôs a ser professor de tal campo do saber”.
[iii] “2.5. Portanto, diferentemente do que alega o impetrante, a tabela de pontuação não gerou distorção nenhuma; pelo contrário, criou as condições para bem pontuar os candidatos conforme mais demonstrassem realizações acadêmicas no campo da Filosofia”.
[iv] Pode-se argumentar que o emprego deste critério não elimina nenhum candidato, uma vezque a pontuação de títulos é apenas classificatória; mas é exatamente este o ponto: ao invés de serem classificados em primeiro lugar (desde que cumpram com outros requisitos da pontuação de títulos). doutores que realizaram o doutorado direto tendem a ser classificados em segundo lugar, terceiro lugar etc., não sendo, com isso, contratados. E por quê? Apenas porque realizaram o doutorado direto.
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