Direito à memória

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Por MAYRA LAUDANNA*

As memórias que os monumentos portam fazem falta. Ao menos eles nos recordam o que já fomos, o que já passamos e o que deveríamos tentar não sermos

Há quase dois anos lamentávamos o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, administrado pela Universidade Federal (UFRJ) e há alguns dias, as chamas que destruíram parcialmente o Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Esta última instituição, embora instalada em prédio pouco adequado, também possuía coleções de fósseis de mamíferos e artefatos arqueológicos que jamais serão recuperados. Talvez por suas instalações não serem tão “históricas” como a do Museu carioca – só o prédio já era um monumento –, a imprensa deu pouca atenção. Mas ambos tiveram sua sede e suas coleções destruídas por falta de cuidados com sua preservação.

Coisa espantosa, sem dúvida, mas tudo nesse país parece causar assombro. Todavia, o que provoca ainda mais sombras é saber que a Constituição Federal de 1988, incluindo a Emenda Constitucional de 2012, compromete-se a proteger a diversidade do patrimônio cultural brasileiro, em regime de colaboração, portanto, descentralizado, objetivando o “desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais”. Ainda mais, compromete-se a ampliar, segundo Art. 216-A, § 1º, XII, progressivamente os “recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura”.

Apesar desses tantos comprometimentos, nossos patrimônios continuam a soçobrar por falta de interesse – ops! verbas – dos governos, ou da autarquia federal do governo do Brasil que se destina a promover e a proteger a “permanência e o usufruto” dos bens culturais do país “para as gerações presentes e futuras”. – http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872

Como se sabe, “patrimônio cultural” é um conjunto de bens móveis e imóveis, cuja conservação deveria ser também de interesse público, visto seu valor arqueológico, etnográfico, biográfico, artístico, mas também por estarem vinculados à chamada “história”, no caso a do Brasil, ainda que esta nem sempre seja memorável.

Um registro de informação, como leis, relatórios, reuniões, grafado, gravado em vídeo ou fixado em qualquer outro suporte também é monumento, como a reunião do dia 22 de abril p.p., que descobriu o Brasil, “dois meses depois do carnaval” – Lamartine Babo. Um patrimônio cultural, sem dúvida, e este foi produzido por aqueles que estavam no poder.

Como todo monumento, um vídeo-documento implica necessariamente avaliações e críticas, pois é memória. Entretanto, o desdém dos órgãos públicos parece não bastar por aqui, pois parte da população brasileira também deseja a destruição das lembranças histórico-culturais. Quer por simples vandalismo, por questões financeiras ou simplesmente por não concordarem com a história. Destruir monumentos é reduzir a crítica ou, ao menos, tentar eliminá-la.

O caráter emblemático dos monumentos, sejam eles escritos ou outros, serve para relembrar o que fomos, ainda que detestemos. Estátuas são memórias, monumentos que, na maior parte das vezes, despertam críticas. Atas de governos, cartas de reis, correspondências várias, desenhos, pinturas, esculturas de qualquer coletividade, prédios, como o do Museu do Ipiranga ou as ruínas do Abarebebê em Peruíbe, enfim, muitos são os monumentos deste Brasil que servem para entendermos o quanto ainda estamos longe de uma democracia.

Eliminá-los é apagar o imaginário de como a história foi construída, sabendo-se que a determinação para a ereção de monumentos públicos, como o das Bandeiras que está no Ibirapuera, cabe, em geral, a agentes que legitimam valores segundo determinados critérios. A obra executada pelo escultor Victor Brecheret é uma homenagem aos que “desbravaram os sertões” durante os séculos XVII e XVIII, erigido para comemorar o IV Centenário da Cidade de São Paulo. Nessa época os bandeirantes já eram uma espécie de Tio Sam há no mínimo 50 anos.

É certo que a depredação ou a intenção de eliminar esses símbolos da memória deveria trazer uma discussão sobre cidade, cidadania, responsabilidade pelo bem público etc. etc. No entanto, essas questões parecem pouco importar para qualquer “esfera” da nossa sociedade.

Fazendo uso da minha liberdade, enquanto isso é possível, recordo aqui que as iniciativas que buscavam institucionalizar a proteção oficial para os monumentos históricos do Brasil datam do início do XX. Aliás, o hábito de se erigir monumentos nesta terra também data do início do século passado. Há monumentos anteriores? Sim, mas pouquíssimos. Construções jovens frente às outras nações, mas, como em qualquer país, essas histórias-homenagens-monumentos sempre foram curiosas ou, ao menos, deveriam despertar a curiosidade: aquele desejo de conhecer e de aprender, pois suas histórias sempre surpreendem, visto estarem sempre vinculadas ao poder da época.

Como nos dias de hoje, os “heróis”, os “defensores da pátria”, os “nobres homens que devem ser memorados” eram erguidos a partir de um imaginário cuidadosamente articulado para se construir uma única história da nação. Assim, no decênio de 1910, considerando-se a proximidade das comemorações dos cem anos da Independência, vários foram os projetos lançados para a construção da “pátria” brasileira. Apesar dos já 100 anos após a princesa Leopoldina ter assinado a Declaração de Independência do Brasil, e isso, como se diz, no prédio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, São Paulo ainda não tinha uma cara, embora ascendesse economicamente.

A cidade paulistana tinha de mostrar à nação o seu lugar, mas não tinha um passado que a elevasse, embora já não mais fosse um entreposto agrícola, mas sim a “capital do café”. Então, porque não destacar esse crescimento voraz dos últimos anos a partir da figura de “heróis destemidos”, “homens aventureiros”, de porte “atlético”, imunes a enfermidades, como se diz na atualidade? Na esteira do que se discutia e se escrevia no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) desde os finais da década de 1890, a figura que simbolizaria São Paulo seria o bandeirante. Nada mais simples, portanto, ou adequado, nessa óptica, que associar a figura dos assim chamados “desbravadores” dos sertões, que tanto contribuíram para as burras da Coroa, com os empreendimentos econômicos da cidade. Invenção de uma tradição? Sem dúvida, como toda tradição.

Adepto à ideia da configuração desse imaginário foi Afonso d’Escragnolle Taunay que, enquanto diretor do Museu Paulista, solicitou e certamente dirigiu a construção da imagem de muitos desses bandeirantes como homens fortes e sadios, com barbas ou sem elas, com chapelões e armas de fogo. [Na época das chamadas entradas e bandeiras não existia a fotografia] Borba Gato foi uma de suas encomendas. Esta ao escultor hoje pouco conhecido Nicola Rollo, mas Taunay também encomendou para ornar o Museu do Ipiranga a figura de Antônio Raposo Tavares e a de Fernão Dias Paes Leme, dois mármores esculpidos pelo escultor italiano Luigi Brizzolara. Estes dois monuméntum, como a palavra indica, trazem à memória, segundo escreve Taunay, dois “ciclos” das empreitadas bandeirantes: o primeiro, o da “caça” ao índio e a devassa do sertão e, o segundo, o do ouro e das pedras preciosas. Os outros seis bandeirantes que são lembrados pelo então diretor destacam que outras unidades da federação também contaram com a coragem “bravia” dos bandeirantes: Manoel da Borda Gato (Minas Gerais), Pascoal Moreira Cabral Leme (Mato Grosso), Bartolomeu Buenos da Silva (Goiás); Manuel Preto (Paraná), Francisco Dias Velho (Santa Catarina) e Francisco de Brito Peixoto (Rio Grande do Sul).

Assim, Taunay e todos os seus apoiadores, nessa época de ufanismo regional e de arranjos para as comemorações do centenário da Independência, inventaram um passado para os paulistas, caracterizando-os como emancipacionistas e protagonistas da história da nação.

Fantástico! Mas é ainda mais extraordinário saber que essas figuras construídas como heróis, com algumas adaptações, ainda hoje permanecem como “fato” para o Exército Brasileiro. É o que se entende ao se ler o artigo “Aspectos Militares das Entradas e Bandeiras” em página da internet da Força Armada Brasileira: “Foi sobretudo graças a eles [bandeirantes] que o país conquistou e conservou, em linhas gerais, a forma atual do seu território.” –

Derrubar o Borba Gato, a pedido de abaixo-assinado que circulou há pouco por ela “retratar” personalidade histórica controversa, isso me parece absurdo, pois as personalidades históricas, na maior parte das vezes, são e sempre serão controversas, quando não frutos da imaginação. Excluir essa escultura da paisagem de Santo Amoro “só porque” – como diz a repórter da rede Globo que voa por esta nossa floresta –, ela é “horrorosa”, também não me parece adequado. Horroroso era o Monumento Campos Gerais de Ponta Grossa, o “Cocozão”. Homenagem do ex-prefeito da cidade às formações rochosas locais, segundo alguns, e à representação do pinheiro araucária, segundo outros, cuja alcunha carinhosa da obra tanto despertou interesse. É… talvez esse monumento melhor nos representasse na atualidade, afinal, as araucárias estão em extinção.

O “Cocozão” foi derrubado, mas sua história permanece nos registros da prefeitura local e ainda hoje na internet, embora o blog sobre ele tenha desaparecido. Derrubar monumentos não apaga nada, pois ruinas sempre restam. Mudar o nome deles também não adianta. Ressignificá-los – ideia que está na moda –, também nada adianta. O que significa colocar um colar no Castro Alves durante o carnaval ou máscaras contra Corona em estátuas públicas? Talvez humor, mas pouco eficaz. Pichar de vermelho monumentos de bandeirantes para lembrar o sangue dos índios derramado por esses homens também não muda a história e tampouco ajuda para que nos tornemos mais democratas. A ditadura também matou índios, pretos, brancos, amarelos, homens, mulheres, transexuais, homossexuais etc. etc. e agora vem sendo requerida a voltar ao poder por parte da população brasileira.

É… monumento faz falta, pois é memória. As ruínas do campo de concentração de Auschwitz foram mantidas como um símbolo do holocausto. E os nossos DOI(s)-CODI(s), locais onde ocorreram execuções e desaparecimentos de opositores ao regime militar instalado em 1964, onde estão? A maior parte sumiu, assim como a maior parte dos documentos dessas épocas hediondas costumam evaporar, ou são deletados. Mas algumas pessoas ainda se lembram do prédio da Rua Tutóia 921 ou o do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, hoje Estação Pinacoteca. Este último, localizado no Largo General Osório 66, e que já foi estação e sede da Sorocabana Railway, tornou-se sede do DOPS na época do interventor Fernando Costa (1942): um centro de tortura durante a ditadura do Estado Novo. Instalada a outra ditadura, a dos anos sessenta, ao que tudo indica, o local passou a ter um papel secundário, mas não deixou de ser um lugar onde atrocidades continuavam ocorrendo. No entanto, hoje seguimos para o local para ver exposições e, quando muito, damos uma olhadela nas três salas que restaram dessas épocas repulsivas. Lembramos disso?

É…as memórias que os monumentos portam fazem falta. Ao menos eles nos recordam o que já fomos, o que já passamos e o que deveríamos tentar não sermos.

*Mayra Laudanna é professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Autora, entre outros livros, de Alex Flemming (WMF Martins Fontes).

 

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