A roda da história

Imagem: Johannes Plenio.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ WERNECK VIANNA*

Há um fio vermelho entre o governo Bolsonaro e a história do nosso autoritarismo político

Não foi a primeira vez e nem será a última em que se tentou nos infaustos acontecimentos deste 7 de setembro fazer a roda da história retroagir a fim de repor o país nos trilhos do malsinado regime do AI-5, obsessão manifesta do governo que aí está. A intentona, preparada como um plano de estado-maior a que não faltaram recursos oficiais e de setores reacionários das elites econômicas, em particular do agronegócio, tinha em mira jogar por terra a Carta de 1988 cujas instituições obstam os arreganhos absolutistas no exercício do poder presidencial.

O sistema de controle do poder contemplado no texto constitucional, orientado para a defesa dos direitos políticos e sociais consagrados por ele, demonizado pela clique no poder como entraves às suas ações liberticidas, deveria ser derrogado. Ferindo de morte o constitucionalismo democrático, ao Judiciário caberia apenas agir nos litígios privados na contramão dos processos civilizatórios emergentes desde a derrota do nazi-fascismo na segunda guerra mundial.

Foi por pouco. E ainda são obscuras as razões por que apenas em um dia a formidável arma de propaganda golpista que se abateu sobre o país fosse recolhida aos coldres, com o país estupefato tomando ciência de uma declaração presidencial reverente às instituições. Para tal resultado, os pronunciamentos fortes e tempestivos de presidentes das altas cortes do Poder Judiciário, a que se seguiram manifestações dos dirigentes do Senado e da Câmara dos Deputados em defesa das instituições democráticas, decerto importaram, mas pode ter havido nos céus mais do que o movimento dos aviões de carreira embora ainda não registrados no radar. Enfim, por fas ou nefas, as trevosas nuvens que pairavam sobre a sociedade se dissiparam como num passe de mágica, ficando o dito pelo não dito enquanto se sussurra na sociedade até quando?

A envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida. Foi real a parada militar em Brasília – os militares sabiam o que se seguiria? –, como reais as concentrações de massas da avenida Paulista e na praia de Copacabana e noutras capitais, como também reais as vociferações do presidente Bolsonaro em todas elas, cruzando o país a bordo de aviões oficiais, dardejando ofensas a autoridades judiciárias com o ímpeto de Donald Trump no frustrado golpe ao Capitólio de 6 de janeiro do ano passado. Real igualmente o suporte financeiro com que setores das elites econômicas deram à mobilização de milhares de pessoas que acorreram às ruas em apoio a Bolsonaro naquela jornada equívoca de 7 de setembro.

Só não vê quem não quer, o governo que aí está não caiu sobre nós como um raio num dia de céu azul, suas raízes têm causas remotas a começar da nossa formação como sociedade e Estado-nação. Padecemos dos males da herança maldita do latifúndio e da escravidão, livramo-nos tardiamente da primeira e ainda coexistimos com a primeira, a essa altura reciclada em agronegócio com seus personagens elevados a posições destacadas na economia e na política. O desenlace do nosso processo de independência política se operou na forma clássica de uma revolução passiva – seu condutor era o príncipe herdeiro da dinastia reinante na metrópole – abortando a revolução nacional-libertadora que tomava forma em movimentos como a Inconfidência Mineira, no de 1817 em Pernambuco e se disseminava pelo Nordeste, especialmente na Bahia, sob a inspiração de ideais liberais influentes na revolução americana.

Os efeitos dessa solução política “por cima” comprometeram no Império a sorte dos liberais com a recusa do imperador do texto da constituição elaborada pela Assembleia constituinte, de caráter liberal em política, vindo a promulgar de modo autocrático a Carta de 1824, que outorgava a ele um poder moderador com o qual limitava o papel da representação e se punha à margem da soberania popular.

Wanderley Guilherme dos Santos, em um ensaio de 1974 A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa, procede a um inventário crítico do destino desse conceito entre nós. Descontado o que há de datado nesse estudo, ele captou com precisão as razões do malogro do nosso liberalismo político a partir de dois momentos de importância capital na formação do Brasil moderno, o da Abolição e o da República.

Ambos movimentos são analisados a partir dos manifestos com que elites políticas da época desencadearam suas campanhas, o Radical Liberal, de 1869, e o Republicano do ano seguinte. Persuasivamente, Wanderley sugere que os rumos futuros da sociedade teriam sido demarcados pelo tipo de orientação neles predominante, enquanto os liberais radicais, defensores de uma monarquia constitucional postulavam em favor de reformas de clara adesão ao liberalismo político, inclusive com a abolição do trabalho escravo, os republicanos, que desejavam o apoio das classes proprietárias a fim de atingir seus objetivos, se fixaram no tema da mudança de regime. Tais divergências entre as elites modernizadoras de então teriam comprometido em boa parte o destino dos ideais liberais debilitando o impulso original que o animava.

A revolução de 1930 abre um novo ciclo na política brasileira dominado pela paixão da modernização econômica e de um Estado dotado de meios eficientes na sua aceleração. É o tempo da fórmula corporativa e do predomínio da ação estatal como reguladora de todas as instâncias da vida social, culminando com a criação do Estado Novo e da Constituição outorgada de 1937. O capitalismo brasileiro deveria seguir um curso iliberal em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas. O empreendimento bem-sucedido tanto em economia como no controle social do mundo do trabalho e da sociedade em geral concedeu permanência, afora os ajustes que se fizeram necessários ao longo do tempo, às instituições e ao estilo de mando autocrático do Estado Novo, exemplar no caso do regime militar de 1964 a 1985, especialmente sob o AI-5, redigido pelo mesmo Francisco Campos, autor do texto da Carta de 1937.

O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza.

A modelagem do governo Bolsonaro é com todas as letras a do capitalismo iliberal. Nesse sentido, há um fio vermelho entre ele e a história do nosso autoritarismo político, remota ou contemporânea, como o Estado Novo e o AI-5, que se opuseram à passagem do liberalismo político. Derrotá-lo, mais do que abrir caminho para as forças vivas da sociedade atual, significa passar a limpo as trevas do nosso passado.

*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Autor, entre outros livros, de A revolução passiva. Iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

Publicado originalmente no Jornal GGN.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Manchetômetro Fernão Pessoa Ramos Vladimir Safatle Leonardo Boff Carlos Tautz Gerson Almeida Rafael R. Ioris Michael Roberts Valerio Arcary Marcelo Guimarães Lima Ricardo Abramovay Boaventura de Sousa Santos Everaldo de Oliveira Andrade Dênis de Moraes Marcus Ianoni Paulo Martins José Dirceu Mariarosaria Fabris Julian Rodrigues Paulo Nogueira Batista Jr Rodrigo de Faria Celso Frederico Manuel Domingos Neto Vinício Carrilho Martinez Claudio Katz João Carlos Salles Flávio R. Kothe Elias Jabbour Maria Rita Kehl Matheus Silveira de Souza Anderson Alves Esteves Ricardo Antunes Paulo Capel Narvai Rubens Pinto Lyra Thomas Piketty Alexandre de Lima Castro Tranjan Henry Burnett Bernardo Ricupero Bento Prado Jr. Luiz Werneck Vianna Lorenzo Vitral Osvaldo Coggiola Bruno Machado José Costa Júnior Plínio de Arruda Sampaio Jr. André Singer Ricardo Fabbrini Priscila Figueiredo Celso Favaretto Milton Pinheiro Luis Felipe Miguel Luís Fernando Vitagliano Vanderlei Tenório João Paulo Ayub Fonseca Jorge Luiz Souto Maior Chico Alencar Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Sérgio Pinheiro José Machado Moita Neto Leonardo Sacramento Gilberto Lopes Marcos Silva Luiz Eduardo Soares José Geraldo Couto Atilio A. Boron Caio Bugiato Marjorie C. Marona Luiz Roberto Alves Eduardo Borges Renato Dagnino Alexandre de Freitas Barbosa Antonio Martins Marilia Pacheco Fiorillo Francisco Fernandes Ladeira André Márcio Neves Soares Fernando Nogueira da Costa Flávio Aguiar Alysson Leandro Mascaro Heraldo Campos Jean Pierre Chauvin Antonino Infranca Andrew Korybko Lincoln Secco Marcelo Módolo Eugênio Bucci Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Benicio Viero Schmidt Armando Boito Marcos Aurélio da Silva Annateresa Fabris Jean Marc Von Der Weid João Feres Júnior Paulo Fernandes Silveira Luiz Renato Martins Michael Löwy Leda Maria Paulani Carla Teixeira Otaviano Helene Anselm Jappe Ronald León Núñez Chico Whitaker Daniel Afonso da Silva Eleonora Albano Antônio Sales Rios Neto Eleutério F. S. Prado Dennis Oliveira Samuel Kilsztajn João Lanari Bo Kátia Gerab Baggio Leonardo Avritzer Jorge Branco Ronaldo Tadeu de Souza Igor Felippe Santos Mário Maestri José Raimundo Trindade Afrânio Catani Denilson Cordeiro José Luís Fiori Luciano Nascimento Luiz Bernardo Pericás Daniel Costa Liszt Vieira Lucas Fiaschetti Estevez Henri Acselrad Walnice Nogueira Galvão Tarso Genro Sandra Bitencourt Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Carlos Loebens João Adolfo Hansen Eliziário Andrade José Micaelson Lacerda Morais Ronald Rocha Ladislau Dowbor Sergio Amadeu da Silveira Michel Goulart da Silva Andrés del Río Berenice Bento Gabriel Cohn Érico Andrade Gilberto Maringoni Slavoj Žižek Juarez Guimarães Marilena Chauí Remy José Fontana João Sette Whitaker Ferreira Francisco Pereira de Farias Tadeu Valadares Fábio Konder Comparato Daniel Brazil Ricardo Musse Alexandre Aragão de Albuquerque Airton Paschoa Luiz Carlos Bresser-Pereira Tales Ab'Sáber Ari Marcelo Solon Luiz Marques Salem Nasser Eugênio Trivinho

NOVAS PUBLICAÇÕES