Amazônia – entre a crise ambiental e o neoextrativismo

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Por JOSÉ RAIMUNDO BARRETO TRINDADE*

De um lado o ambientalismo sufraga a urgência de um “novo modelo”, do outro a dura crueza do balanço de pagamentos e da geração de divisas impõem a expansão do velho modelo primário-exportador

Ainda neste mês foi divulgado estudo realizado por ampla equipe de cientistas nas páginas da respeitável revista Nature, sendo que o referido estudo reforça os diagnósticos que os limites de resiliência da maior floresta tropical do planeta estão próximos de um irremediável colapso.[i]

O objetivo deste texto é tratar da Amazônia enquanto espaço periférico de acumulação de capital por espoliação no contexto do capitalismo contemporâneo brasileiro, estabelecido o caráter do espaço amazônico enquanto fronteira importante para o agronegócio brasileiro. O agronegócio de grãos (soja e milho, principalmente),[ii] constitui o núcleo da agricultura capitalista brasileira, entendido como o estabelecimento de relações agrárias de produção no formato de plantation, com vistas à obtenção e maximização de lucro pela produção e venda de grãos no mercado internacional, rapidamente se estendendo em terras amazônicas.

Esse processo expansivo tem como uma das principais áreas de ocupação, não por acaso, a Amazônia. Três fatores integrados à lógica do atual padrão de reprodução econômica brasileiro explicam por quê: a centralidade primário-exportadora e os elevados ganhos gerados ao segmento da burguesia vinculada ao agronegócio; as características extensivas desse tipo de produção agrária, requerendo abundância de terras e um regime climático de sol e águas que são características edafoclimáticas favoráveis; e, por fim, o histórico favorecimento do Estado brasileiro à concentração latifundiária e a proteção dos interesses rentistas dos mesmos.

Como observa Francisco Costa (2022, p.7), “a apropriação de novas terras [amazônicas] se concentrou em Mato Grosso (41%) e no Pará (36%) que juntos representam 77% do total”, sendo que nessas duas unidades da federação observa-se a expansão do agronegócio, cuja lógica é a extensividade do uso de terras e a crescente concentração fundiária, aprofundando as desigualdades existentes entre os produtores comerciais voltados ao mercado externo e os produtores camponeses e familiares com produção para subsistência e/ou abastecimento local.

A realidade da Amazônia perpassa tanto a esfera natural, compreendendo a maior biodiversidade do planeta, como sua complexa formação socioeconômica. Outro Francisco, conhecido como Chico de Oliveira em sua tenacidade observava, ainda nos anos de 1990, que a Amazônia era palco de permanentes descobertas e reconquistas pelo capital (OLIVEIRA, 1994).  Sobre isto, cabe lembrar que, desde o século XVII, a região amazônica convivia com ciclos periódicos de extração de seus recursos naturais, participando efetivamente da acumulação primitiva de capital.

Contudo, somente no contexto do século XX, os projetos infraestruturais, combinados com os incentivos fiscais governamentais para a produção agrícola, lançaram as bases para que uma grande fronteira de acumulação capitalista se consolidasse na Amazônia, com a diferença de que, desta vez, a integração se fez de forma mais intensa, viabilizada pelos avanços tecnológicos. pelo alto investimento e mais recentemente pela dupla interação entre exportação de bens primários e uso rentista das terras.

No atual estágio, a acumulação se dá não somente na frente agrária, mas também no escopo mais amplo da exploração de seus recursos naturais e de seus habitantes. A Amazônia constitui espaço de expansão da acumulação que integra três fatores básicos da ordem dependente de transferência de valores da periferia para o centro capitalista: terra, como base de exploração agrária (agropecuária); o subsolo, como base de exploração mineral e as fontes hídricas (rios e lagos), como base de exploração energética. Esses condicionantes se somam à lógica de acelerada urbanização que se estabelece com os fluxos migratórios dos últimos cinquenta anos, estabelecendo um padrão de destruição ambiental e pobreza social.[iii]

Nas dinâmicas mais atuais, a acumulação de capital é caracterizada, entre outras atividades, pela criação de gado, sendo que a expansão de cabeças de gado foi viabilizada pela derrubada da floresta, como visto anteriormente, pela redução de custos de deslocamento e pelo aumento na produtividade. Com o aumento da demanda externa por carne de boi, e o aumento da lucratividade da pecuária na Amazônia, cresce a pressão por mais áreas de criação de gado, provocando entrada de novas corporações na região, bem como a diminuição de áreas de florestas e aumento de áreas de pastagens ou lavoura. Neste sentido, cabe ressaltar que um resultado igualmente deletério é o desmatamento associado a estas expansões, cujo impacto se faz sentir de forma significativa nas regiões de expansão de fronteira agrícola.

Mas, além do desmatamento, outros elementos danosos se colocam, como a especialização da matriz produtiva da região em atividades primário-exportadoras, a mercantilização de recursos naturais elementares, a superexploração da mão de obra, e os conflitos sociais pela posse da terra. Estes fatores são relevantes na medida em que promovem cada vez mais exploração do espaço natural e da força de trabalho, bem como acentuam o movimento da internacionalização dos recursos naturais. Esta forma de inserção externa do Brasil no mercado mundial, não se mostra sustentável no longo prazo. Os direitos de propriedade que se estabelecem são estritamente mercantis e a lógica territorial imposta pela dominação do capital financeiro sobre os recursos naturais coloca em questão inclusive a soberania territorial da nação, bem como as condições de reprodução social de seus habitantes e da classe trabalhadora.

Os dados de exportação da Amazônia legal mostram a evolução da dinâmica agrária e extrativa mineral da região. Entre 1997 e 2021, a participação do setor agrícola na pauta de exportações saiu de 14,3% em 1997 para 34,7% em 2021, enquanto a participação da indústria extrativa mineral se deslocou de 23% para 41,8% do total no mesmo período. Em contrapartida, o setor de transformação teve um expressivo decréscimo de 62,5% para 23,4% no mesmo período, representando um decréscimo aproximado de 3,8% ao ano. Este foi mais acentuado do que a dinâmica verificada para o país como um todo, que apresentou um ritmo de diminuição da participação da indústria de transformação de 1,8% no mesmo período.

Analisando o interior do setor agropecuário, por sua vez, é possível verificar que a produção agrícola na Amazônia Legal cada vez mais é ocupada pela produção de commodities, como a soja, cana-de-açúcar, milho e o dendê, em detrimento de outras culturas de maior importância para a alimentação dos habitantes locais e abastecimento do mercado interno, como o arroz, a mandioca e o feijão. Analisando dados quinquenais da Pesquisa Agrícola Municipal de 1990 até 2020, é possível ter evidências desta alteração na produção.[iv]

No início do período, cana-de-açúcar, milho e soja representavam, respectivamente, 2,3%, 22,3% e 25,4% da área plantada total na Amazônia Legal. Em 2020, os valores eram de 6,7%, 29% e 53,2%, representando aumento tanto absoluto como relativo da ocupação de terras para a produção de commodities direcionadas ao mercado externo, sobretudo a soja. Esse aumento de participação relativa deve-se à inserção externa do Brasil, como fornecedor de commodities agrícolas para o restante do mundo, com grande presença de corporações transnacionais deste setor em solo brasileiro e amazônico. Esta tendência se acentua com a liberalização de mercados e desregulamentação do setor, que seguiu a tendência neoliberal dos governos brasileiros nesta década, culminando na penetração do capital internacional.

Por sua vez, ao se analisar a participação de culturas voltadas ao mercado interno, o que se verifica é um declínio bastante acentuado no mesmo período. A cultura do arroz, por exemplo, que antes correspondia a 27,8% da área plantada total na Amazônia Legal em 1990, apresentou redução para incríveis 1,9% em 2020, demonstrando como a expansão da grande produção agroindustrial afeta a produção de culturas básicas. O mesmo ocorreu para o feijão, cuja participação diminuiu de 6,7% para 1,5%, e para a mandioca, que apresentou diminuição de 10,8% para 2,2%.

A proporção de pequenas propriedades tem diminuído de forma mais acentuada na Amazônia Legal em comparação com o restante do Brasil, realidade que pode ser evidenciada a partir da variável proporção de propriedades com menos de 10 hectares em comparação com o total de propriedades no território em questão. Neste debate, atesta-se que a proporção de estabelecimentos com menos de 10 hectares diminuiu de 66,5% do total em 1970 para 36,9% em 2020 na Amazônia Legal, enquanto para o Brasil, a redução foi de 51,2% para 50,1%.

Ao mesmo tempo, ao analisar o outro extremo, das propriedades de mais ampla dimensão, também é possível notar que a Amazônia Legal tende a concentrar cada vez mais a terra. Enquanto a proporção de estabelecimentos de 100 a 1000 hectares e acima de 1000 hectares se mantém estável para o Brasil (entre 8,4% e 0,9% respectivamente), há significativo aumento para a Amazônia Legal. Neste sentido, em 1970, os estabelecimentos de 100 a 1000 hectares eram 8,8% do total, passando a 14,7% do total em 2017, enquanto aqueles de mais de 1000 hectares passaram de 0,9% para 2,3% do total na região.

Assim, a região Amazônica apresenta elementos que caracterizam a acumulação por espoliação, como a utilização e mercantilização de seus recursos naturais em uma escala entrópica de gigantesca degradação. No âmbito dos grandes projetos de ocupação desenvolvidos para a Amazônia nas últimas sete décadas, observa-se um grande influxo de capital externo para a região, materializado nos projetos agrários, minerários, hidroenergéticos e na expansão da fronteira agrária, estabelecendo a lógica de modernização conservadora tão bem caracterizada por Chico de Oliveira.

Por tudo que foi desenvolvido ao longo do texto fica bastante evidente a complexa questão envolvida: se de um lado o discurso ambientalista sufraga a necessidade de um “novo modelo”, por outro a dura crueza do balanço de pagamentos e das necessidades de geração de divisas nacionais impõem a continuidade e expansão do velho modelo primário-exportador e, em termos bastante agudos, muito pouco preocupado com a preservação de biomas ou de elevação da qualidade de vida das populações autóctones amazônicas.[vi]

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (CRV).

Referências


B.M., Montoya, E., Sakschewski, B. et al. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626, 555–564 (2024). https://doi.org/10.1038/s41586-023-06970-0.

COSTA, F. de A. Da estrutura fundiária à dinâmica do desmatamento: a formação de um mercado de terras na Amazônia (1970-2017). Nota de Política Econômica – MADE/USP, no. 19, 2022.

OLIVEIRA, F. de. A reconquista da Amazônia. In: D’INCAO, M. A. e SILVEIRA, I. M (orgs.). Amazônia e crise da modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, , p. 85-95, 1994.

TRINDADE, J. R. B. e OLIVEIRA, W. P. de. Especialização produtiva primário-exportadora e meio ambiente em período recente na Amazônia. In: Novos Cadernos do NAEA, Vol. 14, N. 02, 2011. Acesso em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/539.

TRINDADE, J. R. B. e FERRAZ, L. P. Acumulação por espoliação e atividade agropecuária na Amazônia brasileira. In: Revista da SEP, n° 67, acesso em: https://revistasep.org.br/index.php/SEP/article/view/1051.

Notas


[i] O estudo publicado na revista Nature estima que “até 2050, 10% a 47% das florestas amazônicas estarão expostas a estresses que podem desencadear transições inesperadas nos ecossistemas e potencialmente exacerbar as mudanças climáticas”. O estudo está acessível em https://www.nature.com/articles/s41586-023-06970-0.  B.M., Montoya, E., Sakschewski, B. et al. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626, 555–564 (2024). https://doi.org/10.1038/s41586-023-06970-0

[ii] “O Valor Bruto da Produção (VBP) em 2022 das principais cadeias agrícolas foi: soja (R$ 385,2 bilhões), milho (R$ 165,5 bilhões), cana-de-açúcar (R$ 80 bilhões), café (R$ 57,5 bilhões) e algodão (R$ 50,1 bilhões)”. Conferir: EMBRAPA (2023). Acesso em: https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/78089493/artigo—a-cadeia-produtiva-de-hortalicas-e-o-valor-bruto-da-producao#:~:text=Brasil%20(CNA).-,Nesse%20cen%C3%A1rio%2C%20o%20VBP%20em%202022%20das%20principais%20cadeias%20agr%C3%ADcolas,%24%2050%2C1%20bilh%C3%B5es).

[iii] Para um tratamento meticuloso do neoextrativismo amazônico e seus impactos sugiro acessarem Trindade e Oliveira (2011).

[iv] A PAM (Pesquisa Agrícola Municipal) é acessível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.

[v] Os dados são do Censo Agropecuário (diversos anos). Dados disponíveis em: https://sidra.ibge.gov.br/acervo#/S/CA/A/Q

[vi] Este texto sintetiza o trabalho de maior folego publicado na Revista da SEP (Trindade e Ferraz, 2023), acessível em: https://revistasep.org.br/index.php/SEP/article/view/1051.


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