Arábia

Carlos Zilio, PRATO, 1971, tinta industrial sobre porcelana, ø 21cm
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Por FILLIPE MOTA* E ISADORA XAVIER**

Comentário sobre o filme de Affonso Uchoa e João Dumans

Arábia, o filme, se vale da ficção para devolver cores à realidade, permitindo ao espectador sensibilizar-se com a banalidade ao apreender aquilo que lhe é peculiar. Cristiano, personagem principal do filme, é um trabalhador comum. Logo no início do filme, no entanto, saindo da fábrica, é vítima de um acidente. Ele se apresenta por meio de simples relatos do seu cotidiano tal como transcreve em uma espécie de diário, sugerido pelo grupo de teatro de uma fábrica na qual havia trabalhado.

O contato com Cristiano surge, portanto, a partir das suas lembranças, recontadas por ele próprio e sujeitas aos desvios e colorações que lhes concede. “É difícil escolher um momento marcante para contar. Porque, no fim de tudo, o que sobra mesmo é a lembrança do que a gente passou”, anuncia logo ao iniciar o seu relato. Com isso, a própria estruturação da produção ficcional, ao fundar suas bases na narração de Cristiano, confere à linearidade da ficção a potência complexa da realidade, permitindo ao trabalhador comum a sua livre apresentação aos espectadores – ainda que ficcionalmente.

Cristiano é um trabalhador que, como muitos outros, vive do trabalho. Não se define pela profissão que lhe é cara, mas pelo trabalho que lhe é oferecido. Transita das plantações de laranja às fábricas de tecido, até chegar à indústria metalúrgica. E se nos primeiros ainda permeiam marcos de sua vida, na indústria, como diria Marx, torna-se verdadeiro apêndice da máquina. Não porque antes não o era, mas porque é nessa que a potência da imagem nos permite verdadeiramente enxergá-la e senti-la. Seus movimentos submetem-se à determinação que lhe é externa e direcionam-se à finalidade que lhe é totalmente alheia. É sobre o pano de fundo asfáltico que se revela mais facilmente a sutileza de uma flor, mas essa não deixa de ser sutil e nem aquele deixa de ser hostil ao serem contrapostos a outros.

O trabalho, que uma vez deu ao homem a capacidade de criar, se descolore sob nossos olhos. No entanto, não é somente a máquina e seu som estridentemente desumano o que nos choca, mas utilidade daquele labor, a qualidade do dispêndio de tempo para aquela vida que sabemos não mais existir. Somos, com ele, submetidos a essa agressão.

Os sons da maquinaria industrial, o trabalho que se repete sob os ditames da máquina, o dispêndio de tempo e força à finalidade que se propõe à revelia do seu autor. O produto daquele labor não se apresenta durante todo o filme, apenas o trabalho. Não cabe ao trabalhador, afinal, questionar a que destina sua força. Talvez não caiba sequer ao capitalista. É o mercado que gira, e com ele o capital, e com ele a produção, e com ela, por fim, o trabalhador. Gira como se fosse uma de suas engrenagens. Não importam as necessidades, mas o lucro. O trabalho transformado em mercadoria livremente apropriada e direcionada ao lucro alheio. Essas são a realidade e a ficção que se apresentam.

Na passagem da narração, uma das personagens conta uma piada que bem retrata a realidade apresentada: “Um bilionário árabe descobre que os pedreiros brasileiros são muito baratos. Ele, então, decide contratar cinco para chefiarem a construção de seu castelo. Quando a equipe estava no avião, a caminho do país do poderoso chefe, há uma turbulência que força a aeronave a fazer um pouso de emergência no deserto. Ao sair da nave, um dos pedreiros diz para os colegas: ‘areia aqui, areia ali, areia lá… Quanta areia! Imagina quando chegar o cimento!”.

É a vida em Arábia que o filme se propõe narrar. Direcionada pelo lucro, a utilidade do trabalho não é questionada. Como dito, envolvido na produção, o trabalhador não se define pela profissão que lhe é cara, pelos seus desejos ou necessidades, mas pelo trabalho que lhe é oferecido. Sua necessidade é apenas a subsistência, e o trabalho um meio para adquiri-la na sociedade onde tudo é mercadoria, inclusive ele próprio.

Todo o filme se desenvolve a partir da narrativa de Cristiano. A participação do teatro no filme, embora brevemente citada, não deve ser esquecida. Impossível assistir e não ser logo remetido aos trabalhos de Augusto Boal e Paulo Freire. Mais do que um mero processo criativo, o exercício proposto pelo Teatro e pela Pedagogia do Oprimido fornece as ferramentas que permitem ao próprio autor a compreensão da sua inserção na sociedade e, com isso, as condições para mudá-la. Com isso, devolvem à arte a potência política que por vezes lhe é negada.

A prevalência da técnica na estruturação da sociedade capitalista esconde por debaixo dos escombros as razões políticas que lhe concedem sustentação, e faz erigir à frente do trabalhador apenas a razão técnica que lhe afasta as dúvidas por tão incompreensível. Submete-se, sem saber, à exploração cuja base nada mais é que política. Ao contrário das rígidas estruturas técnicas que se projetam frente ao trabalhador, o exercício artístico é elástico e permite a reconstituição da realidade à medida que é constituído, num movimento perpétuo dialético entre obra e autor.

Afinal, tendo o teatro da fábrica dado origem à escrita que narra o próprio filme, permitiu a Cristiano senão a mais nítida percepção da sua realidade, à medida que a recriava, ao menos a capacidade de compartilhá-la com outros, permitindo-nos a melhor compreensão da nossa realidade, à medida que absorvíamos aquela que se nos apresentava. É através da reprodução artística da realidade, pinçando da banalidade do cotidiano as suas determinações mais íntimas, que ambas as percepções se apresentam. Ao fim do filme, a intensa sensação como a de um pesadelo do qual se acorda se dá em nós assim como no personagem. Os traços que se revelaram não podem mais ser apagados.

“Eu senti o meu ouvido fechando e fiquei um pouco surdo por alguns segundos. Nesse momento, aconteceu uma coisa muito estranha: o barulho da fábrica sumiu e eu ouvi meu próprio coração. E, pela primeira vez, parei pra ver a fábrica e senti uma tristeza de estar ali” (Cristiano).

*Filippe Mota, servidor público, é bacharel em Direito.

**Isadora Xavier é professora do ensino público e doutora em ciência da literatura pela UFRJ.

Referência

Arábia

Brasil, 2018, 97 minutos

Direção: Affonso Uchoa, João Dumans

Elenco: Aristides de Sousa, Murilo Caliari, Renata Cabral

 

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