O leite condensado derramado

Imagem: Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CAPITÃO COOK*

Memórias de um recruta num Brasil de regalias

O escândalo sobre os gastos do Ministério da Defesa com leite condensado trouxe-me diversas recordações de quando fiz o serviço militar obrigatório, em um quartel de intendência do Exército em Curitiba. Um quartel de intendência, segundo o site do Exército Brasileiro (EB), abriga os “mestres no suprimento e nas finanças”. Dizem que o General Pazuello, atual Ministro da Saúde, é um desses mestres em fornecer suprimentos.

Servi como soldado do EB por dois anos. O primeiro, pelo serviço obrigatório e, na sequência, como engajado, que nada mais é do que continuar após esse período inicial como um empregado. Fiquei porque encarei aquilo não como missão (risos), mas como um emprego que pagava mais do que conseguiria em um trabalho como office boy.  Isso já tem algum tempo, foi no final dos anos 1990.

A vida de um soldado no EB se resume, nos seus primeiros meses, a decorar algumas regras básicas. Acho que podem ser esquematizadas em três principais:

1 – Aprender o que é esquerda e direita. Não no sentido ideológico, mas no sentido da orientação do corpo. Sem essa habilidade será impossível executar corretamente uma das principais funções da vida de um militar doEB, que é realizar, sem erros, a Ordem Unida. Neste momento as palavras que ecoam nos ouvidos de todos os soldados são: direita volver, esquerda volver, meia volta volver. De acordo com a Wikipédia, a ordem unida tem a função de desenvolver a disciplina, o autocontrole, o senso de grupo, autoestima (?) e desenvolvimento físico. Descobri recentemente, motivado em escrever esse texto, que há um manual com mais de 250 páginas sobre os fundamentos da Ordem Unida. Acho que devo carregar algum trauma por passar horas executando as ordens, geralmentecom o sol a pino, pois, até hoje, costumo fazer algumas confusões com comandos de esquerda e direita.

2 – Importantíssimo! Aprender a distinguir as patentes dos militares. O motivo é simples: a obrigatoriedade de prestar continência para todo mundo, a toda hora, desde que tenha alguma patente. Como as forças armadas se constituem pela hierarquia e não pela igualdade, soldados não prestam continência para quem está no mesmo nível hierárquico. Então, para não fazer papel de bobo, é razoável aprender todas as insígnias acima. Quanto mais alta a patente, com mais vigor deve se prestar continência. Junto com o entendimento sobre as patentes também se aprende o senso de inferioridade: nunca questionar e dizer, ininterruptamente, sim senhor, não senhor.

3 – Aprender todas as letras das principais músicas do EB. Decorar a letra do hino nacional é uma necessidade de sobrevivência. Isso porque existe o fiscal do Braço Forte. Isso mesmo. Naquela estrofe, se você cantar “Se o penhor dessa igualdadeconseguimos conquistar com braços fortes”, utilizando o plural, você provavelmente ficará cantando sozinho, à capela, diante de todos. É um dever aprender o macete do lema do EB “Braço Forte, mão amiga”.

Além dessas rotinas fundamentais na vida de um recruta, outras vão se intercalando ao longo de um ano de serviço militar, entre elas:

A realização semanal do TFM (Treinamento Físico Militar), que deve ser o mesmo praticado pelo exército desde a Guerra do Paraguai. Consiste na realização de diversos exercícios com o objetivo de ferrar com o joelho alheio. Fora este exercício sádico, os soldados também correm.  Quando alguém cometia algum erro, corria o risco de ficar correndo com uma faixa na cabeça e gritando “eu sou o Rambo, eu sou o Rambo”. O objetivo educativo é tornar o soldado mais atento aos comandos. Obviamente, esse modelo rudimentar de TFM é aplicado para os recrutas. Os oficiais, em geral, usam esse tempo destinado ao treino do corpo para jogar algumas partidas de futebol, dentro do horário de expediente, logo uma pelada remunerada.

Também faz parte o treinamento de tiro, mas esse é um evento extraordinário que envolve muita ansiedade por parte dos soltados que podem, enfim, sentir aquela emoção dos filmes e o cheiro de pólvora. Pelo lado dos oficiais é algo necessário para “formar” um soldado para uma eventual guerra, imagina um soldado que não sabe usar um Fal 7,62. Depois de alguns meses de treinamento para aprender a limpar, montar e desmontar o fuzil chega o grande dia de disparar uma dúzia de tiros.  Isso mesmo, a grande maioria não irá treinar mais que uma vez e disparar alguns tiros. No meu caso, atingi a média de acertos da maioria dos meus colegas: 3 acertos em 12 tentativas.  Pronto para a guerra.

Outras atividades rotineiras de um soldado se vinculam à manutenção dos quartéis. São aquelas imagens que viram memes na internet. Lavar carros, pintar meio fio, cortar gramas, pintar paredes, consertar móveis, podar árvores. Após o treinamento básico, essas consistem no maior tempo de trabalho de um recruta, além da escala de serviço para ser vigia nas guaritas.  Aliás, o uso de soldados para tarefas de manutenção não se resume aos quartéis, pode ser um fato isolado, mas lembro-me de um major que sempre escalava um recruta para lavar a sua louça em sua casa. Neste caso, um motorista ainda era deslocado para que o serviço pudesse ser realizado. Engraxar coturnos alheios também era uma das atividades essenciais dos soldados. Penso que, na verdade, a grande finalidade do serviço militar obrigatório é fornecer mão de obra barata e obediente para a manutenção dos quarteis. Provavelmente essas atividades seriam menos onerosas para o Estado se fossem terceirizadas, mas os oficiais certamente ficariam sem ter alguém para quem ensinar a ordem unida e satisfazer seus sadismos.

Depois que terminei o treinamento militar básico que me tornaria um verdadeiro defensor na nação, fui escalado para trabalhar na cozinha do quartel (rancho). Perguntaram se sabia cozinhar e disse que sim. Depois descobri que aqueles que trabalham na cozinha não são vistos como verdadeiros soldados e são apelidados de“boina rosa” ou “pé de banha”. Iniciei minhas atividades no rancho como “rancheiro”, que seria uma espécie de faz tudo, lavava o chão e a louça, descascava batatas, descarregava os caminhões com alimentos, etc. No rancho a atividade de maior prestígio é a de cozinheiro, que oferecia vantagens bem atrativas como não precisar lavar a louça e cumprir escalas de trabalho para os plantões (cozinheiro do dia)um pouco melhores. Na cozinha do quartel que trabalhei quem mandava era um cozinheiro civil com seus sessenta anos. Diziam que ele era um preso que, durante o regime militar, trabalhava no quartel e, quando chegou a democracia, foi incorporado como funcionário público devido à graça concedida por um general. Não sei quanto dessa história era verdadeira, mas todos o respeitavam, com certo ar de medo.  Na hierarquia dos soldados a data de nascimento é a escala métrica da antiguidade. Quanto mais velho, mesmo que por dias, melhor colocado estaria, isso inclui o seu número enquanto soldado. O meu era um dos últimos entre os soldados do rancho. Quando sobrou uma vaga para cozinheiro, foi o cozinheiro civil que deu a ordem para o tenente para que eu fosse promovido. Isso, obviamente, não foi bem visto pelos outros soldados “mais antigos”, tendo sofrido alguns pequenos atentados durantes minhas escalas, mas nada que uma boa estratégia de guerra não pudesse reverter as adversidades em meu benefício.  Ter jogado WAR foi de grande serventia para meus anos de EB.

Como todo processo de distinção social se passa também por aquilo que se coloca à mesa, não poderia deixar de falar como isso ocorria no quartel em que servi. Primeiro há uma separação dos espaços reservados para cabos e soldados e aqueles destinados aos oficiais.  O primeiro é chamado de rancho, o segundo de cassino.

No primeiro a dieta nutricional consistia em uma variação de arroz, feijão, farofa, macarrão e frango. Servia-se carne bovina de duas formas, como carne moída (boi ralado) ou no formato picadinho. A salada era sempre de repolho. Podia-se optar entre água ou chá, cujo apelido era “chá brochante”. No café da manhã sempre havia café, leite em pó dissolvido em água e pão com margarina, nada de leite condensado. Nas festas de final de ano costumava se servir arroz à grega com algum assado.

Já no cassino, as refeições eram servidas por soldados-garçons. Havia uma variação de saladas e sempre um assado. Era constante o preparo de carne recheada, bobó de camarão ou moqueca, entre outras coisas. Como sobremesa não faltava um pudim de leite. Mas não eram as refeições cotidianas que chamavam à atenção. Militares gostam de festas, sempre há uma data para se festejar: dia do soldado, do exército, da intendência, da bandeira, da independência, da proclamação da república e o 1º de abril.  Nestes eventosestávamos à disposição para servirboa comida e bebida aos oficiais. O que mais me intrigava eram as sextas-feiras, dia que, em geral, os militares cumprem meio expediente. Enquanto soldados iam para casa ao meio dia, oficiais aproveitavam para festejar com churrasco e cerveja. Alguns soldados ficavam escalados para a faxina. Anos depois, morando no bairro Bacacheri, que concentra vários quarteis em Curitiba, toda sexta-feira, invariavelmente, às 11 horas da manhã, havia o tradicional cheiro de churrasco vindo de dentro de um dos quarteis do EB, acompanhado dos sons da confraternização, música e risadas, que duravam até o final da tarde. Imagino como devem ser frequentes as festas na sede do Estado Maior do EB na capital federal.

Não acho que o EB deva ser extinto, apenas profissionalizado. Isso significaria certamente acabar com serviço militar obrigatório, que recruta apenas filhos da classe trabalhadora, muitas vezes sem opções de outros trabalhos. Mas essa alternativa de emprego não pode significar a subserviência e a exploração da dignidade de milhares de jovens sob a ilusão de transformá-los em soldados ou bons cidadãos. Muito do que vi nos dois anos de EB se traduz em humilhações que serviam apenas para alimentar egos e satisfazer a vontade de superioridade de uma sociedade desigual e hierarquizada.  Oficiais deveriam lembrar que antes de serem “guerreiros”, são funcionários públicos.

Parte do bom serviço prestado pelo EB durante eventos catastróficos ou campanhas nacionais, como a da vacinação, por exemplo, poderiam ser realizadas também por bombeiros (não necessariamente ligados às PMs) ou por profissionais de saúde da família. Penso que o exército deve concentrar suas forças nas fronteiras nacionais e não nas capitais. Mas um verdadeiro debate sobre uma reforma nas forças armadas provavelmente só ocorrerá quando atingirmos a maioridade democrática. Enquanto isso, como li em algum comentário em um dos vários postsdas redes sociais em respostaaos milhões de reais utilizados na compra de leite condensado pelo Mistério da Defesa: “deste jeito não ganharemos nem a guerra contra a balança”.

*Capitão Cook é doutor em sociologia e professor.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Renato Dagnino Luiz Eduardo Soares Francisco Fernandes Ladeira Thomas Piketty Celso Favaretto João Lanari Bo Ronaldo Tadeu de Souza Jean Marc Von Der Weid Julian Rodrigues Heraldo Campos João Carlos Salles Rubens Pinto Lyra Henry Burnett Mário Maestri Alexandre Aragão de Albuquerque Annateresa Fabris Bernardo Ricupero Michel Goulart da Silva Chico Whitaker Paulo Fernandes Silveira Airton Paschoa José Geraldo Couto Eleonora Albano José Luís Fiori Vladimir Safatle Ari Marcelo Solon Ricardo Fabbrini João Carlos Loebens Armando Boito José Costa Júnior Marilena Chauí Ronald León Núñez Everaldo de Oliveira Andrade Dennis Oliveira Ladislau Dowbor Luis Felipe Miguel Gilberto Maringoni Tarso Genro Walnice Nogueira Galvão Michael Löwy Fernando Nogueira da Costa Érico Andrade Alexandre de Lima Castro Tranjan Samuel Kilsztajn Kátia Gerab Baggio Marjorie C. Marona Marcelo Guimarães Lima Rodrigo de Faria Eliziário Andrade Marcus Ianoni Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bruno Machado Eleutério F. S. Prado Milton Pinheiro Priscila Figueiredo Ricardo Abramovay Vinício Carrilho Martinez Afrânio Catani Luiz Roberto Alves Jorge Branco Fábio Konder Comparato Flávio R. Kothe João Feres Júnior Gilberto Lopes José Dirceu Antonino Infranca Luiz Carlos Bresser-Pereira José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Musse Carla Teixeira Luciano Nascimento Ricardo Antunes Claudio Katz Fernão Pessoa Ramos Luiz Renato Martins Elias Jabbour Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Avritzer João Adolfo Hansen André Márcio Neves Soares Dênis de Moraes Leonardo Boff Boaventura de Sousa Santos Lincoln Secco Daniel Brazil Valerio Arcary Andrew Korybko Flávio Aguiar Remy José Fontana Paulo Martins Eugênio Bucci Liszt Vieira Otaviano Helene Marcos Aurélio da Silva Chico Alencar Eduardo Borges Antonio Martins Jorge Luiz Souto Maior Carlos Tautz Lorenzo Vitral Denilson Cordeiro Vanderlei Tenório Salem Nasser Sandra Bitencourt Ronald Rocha Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Sacramento Alexandre de Freitas Barbosa Gerson Almeida Tales Ab'Sáber Marcelo Módolo Antônio Sales Rios Neto Anselm Jappe Celso Frederico José Machado Moita Neto Francisco Pereira de Farias Daniel Afonso da Silva Rafael R. Ioris João Paulo Ayub Fonseca Luiz Marques Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Caio Bugiato Juarez Guimarães Marcos Silva Manchetômetro Henri Acselrad Luiz Bernardo Pericás Maria Rita Kehl Michael Roberts Luiz Werneck Vianna Benicio Viero Schmidt Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Jean Pierre Chauvin Bento Prado Jr. José Raimundo Trindade Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Sérgio Pinheiro Eugênio Trivinho Mariarosaria Fabris Gabriel Cohn Matheus Silveira de Souza André Singer Yuri Martins-Fontes Paulo Capel Narvai Igor Felippe Santos Manuel Domingos Neto Anderson Alves Esteves Atilio A. Boron Andrés del Río Leda Maria Paulani Alysson Leandro Mascaro Berenice Bento Osvaldo Coggiola Sergio Amadeu da Silveira João Sette Whitaker Ferreira Slavoj Žižek Daniel Costa Luís Fernando Vitagliano

NOVAS PUBLICAÇÕES