Microconto e pandemia

Imagem: Ermelindo Nardin
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre a proliferação de mini contistas nas redes sociais

A invenção da história curta, ao contrário do que alguns pensam, é milenar. As fábulas da antiguidade, as piadas de todos os povos e culturas, os limericks, os pequenos “causos”, todos são herdeiros de uma tradição ancestral, oral, onde uma história é contada rapidamente, podendo ou não conter um fundo moral, satírico ou meramente descritivo.

Vários escritores exercitaram seu poder de síntese criando micro contos de uma ou duas linhas. Um exemplo famoso é o do escritor hondurenho (radicado na Guatemala) Augusto Monterroso (1921/2003): “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Especialista em minicontos e aforismas, Monterroso procurava criar um clima e sugerir uma situação, contando com a imaginação do leitor. Sempre lembrado é o exemplo de Hemingway (1899/1961), que sendo autor de romances caudalosos, escreveu (ou relatou uma placa numa janela, segundo ele) um drama mais curto ainda: “À venda: sapatos de bebê, nunca usados”.

Os americanos chamam isso de flash fiction. Como em todo gênero – ou subgênero –, há poucos criadores, alguns mestres e muitos diluidores. Um processo semelhante ao que ocorre com o haiku, ou haikai. É impressionante a quantidade de pessoas que acham que enfileirar palavras em três linhas é um haiku. Assim como uma piada, um caso cotidiano ou um comentário sobre banalidades não é um miniconto, nem sequer uma microcrônica.

Aí entra o X do problema, o “mistério” da literatura. Um indivíduo dotado de certo espírito poderia até emitir frases parecidas com as de Monterroso ou Hemingway, mas só isso não basta para caracterizá-lo como escritor, criador ou gênio. É como um sujeito acertar um ovo frito no ponto e se julgar um cozinheiro, ou fazer um belo rabisco e pensar que é um artista plástico. Todos têm direito de fazer belos rabiscos de vez em quando, ou até mesmo de criar uma boa frase. Ou pelo menos o direito de tentar.

O miniconto, como acabou sendo definido no Brasil, também não é invenção da internet, embora tenha encontrado aqui terreno propício para se multiplicar. Escritores como Dalton Trevisan já experimentavam a forma na década de 1980. O paranaense lançou um volume de micro contos, Ah, É? em 1994. Em revistas e jornais, muitos escritores exercitaram o econômico formato, muitas vezes forçados pelo espaço exíguo.

O sempre ligado Marcelino Freire desafiou cem escritores a escrever obras com no máximo 50 letras. O resultado foi o volume Os cem menores contos do século, publicado em 2004. Nomes consagrados toparam o desafio, mas a peneira se repete: há muito cascalho pra pouco diamante.

A internet abriga vários sites e blogs dedicados ao micro gênero. Reverberam o velho McLuhan, que antecipou essa relação entre forma e conteúdo na sua famosa fórmula “o meio é a mensagem”. A urgência da informação, a velocidade da leitura, a inadequação de textos longos à tela do celular, a vertiginosa espiral de informação que se acelera com a evolução da tecnologia, tudo isso proporciona um terreno fértil para a germinação desse capim literário. Não são árvores, e nem pretendem ser, mas cumprem função essencial no ecossistema literário do século XXI.

Histórias curtas e bem contadas não precisam ser tão radicais a ponto de serem resumidas em uma linha. Minicontos de meia página, de uma ou duas laudas, ampliam as possibilidades do “golpe certeiro”, como dizia Cortázar. Aliás, ele próprio um cultor da forma curta, com seus cronópios, famas e esperanças.

Curiosamente, a pandemia provocou uma proliferação de mini contistas na rede. Digo “curiosamente” porque era de se supor que o recesso obrigatório motivasse as pessoas a escreverem coisas mais longas, trabalhadas, reflexivas. Não que tamanho seja documento, em literatura. Sabemos que um romance de 400 páginas pode ter a profundidade de uma poça d’água, e um verso ser mais profundo que um poço artesiano. Apesar disso, era razoável imaginar que o período de clausura permitisse mergulhos mais amplos e profundos no exercício literário. Creio até que isso ocorreu, em alguns casos.

Porém, muita gente que se contentava em contar casos no bar, no pátio da escola ou no churrasco da turma passou a “se exprimir”, digamos assim, na www. Estão confinados, mas através das brechas permanentes e onipresentes da internet destilam sua “criatividade” em poucas linhas, possíveis de serem lidas no ônibus, no trem, na sala de espera do consultório, ou até entre um comercial e outro da TV.

Os que chegarem ao final do século XXI poderão apreciar melhor o que resultou desse processo. Como envolvido no enredo, e movido por curiosidade permanente, dediquei algum tempo a acompanhar a produção dos cultores dos pequenos formatos. Há boas pepitas, como a obra de Sonia Nabarrete, escritora de perfil nelsonrodrigueano (mas feminista!), que aborda os relacionamentos durante a pandemia com um viés erótico e satírico. Publicados em 2021 pela editora Feminas em dois pequenos volumes (Enquanto a gente estava entre parênteses… e O mundo parou, mas a gente não desceu) seus minicontos delineiam uma série de comportamentos confinados, formando um mosaico de taras, desejos e frustrações, com pitadas de crítica social e política.

Hoje, quando pesquisamos o cotidiano do início do século XX, apontamos a lupa para cronistas como João do Rio, Machado de Assis, Lima Barreto e alguns outros. Daqui a cem anos, se ainda houver vida e cultura como definimos hoje, provavelmente os cientistas/computadores estarão pesquisando vídeos, fotos e posts sobre essa fase terrível causada pelo Covid-19 e suas mutações, algo equivalente à Primeira Guerra Mundial no século anterior.

Se sobrar algum espaço para a literatura, haverá relatos substanciosos e uma miríade de micro ou minicontos ou crônicas virtuais. Certamente Sonia Nabarrete estará presente como atenta investigadora da psique humana, sem nunca ter abdicado da risada e da ironia para retratar de forma aguda o purgatório pelo qual passamos.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES