A estratégia do bolsonarismo e o dilema da esquerda

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018
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Por ANTÔNIO DAVID*

Nem todo eleitor de Jair Bolsonaro é bolsonarista. Nem todo bolsonarista é fiel a Jair Bolsonaro

Encerar o bolsonarismo como o movimento político de Jair Bolsonaro é redutor e perigoso. Nem todo eleitor de Jair Bolsonaro é bolsonarista. Nem todo bolsonarista é fiel a Jair Bolsonaro.

A palavra bolsonarismo designa a forma social e política assumida, no curso da década passada, pelo ódio à esquerda, canalizado para sua principal expressão no Brasil, o PT, estendendo-se a movimentos sociais, indivíduos, governos e outros partidos de esquerda. Como se sabe, um tal ódio, histórico, assume diferentes formas de tempos em tempos, tendo o PT como alvo prioritário desde sua fundação.

Vários fatores concorreram para alimentar o ódio extremado que tem lugar na atual conjuntura. Provavelmente os mais relevantes são a Operação Lava Jato e sua exploração midiática ostensiva, o extraordinário avanço, nas duas últimas décadas, de discursos em defesa de (e eventualmente de direitos para) negros e pardos, mulheres, pessoas LGBTQI+ e povos originários, e, o que é menos lembrado, mas, a meu juízo, o fator decisivo, a explosão do desemprego e a queda abrupta da renda desencadeadas pelo anúncio, por Dilma Rousseff, de Joaquim Levy como ministro da Fazenda em 2014, logo após o segundo turno da eleição presidencial, e pelo ajuste fiscal que então se seguiu. Nessa ocasião, entre a massa de prejudicados, em que se concentravam os eleitores de Dilma Rousseff, o sentimento predominante foi de traição, produzindo um antipetismo arraigado e extremado.[1]

Até então um deputado federal marginal, Jair Bolsonaro foi hábil o suficiente para, aproveitando-se da ocasião aberta pelo desgaste do PT, dar unidade ao ódio.[2] Quase trinta anos de discurso de ódio como parlamentar enfim renderam frutos. Não é casual, contudo, que tenha sido justamente essa figura quem logrou fazê-lo. Dentre aqueles que, com exposição midiática garantida, alimentaram-se do ódio e o alimentaram de volta nos últimos anos, não por acaso coube a um militar o papel de liderança.

Não foi apenas a imagem positiva que os brasileiros tinham das Forças Armadas, em contraste com a imagem negativa – amplificada pelos acontecimentos de 2013 – de partidos e outras instituições da República, o que favoreceu o capitão do exército em meados de década passada. Foi sobretudo a imagem das Forças Armadas como símbolo de ordem e de autoridade. Quem melhor do que um militar, arauto da ordem, para ser porta-voz da insatisfação diante de um mundo que parecia cada vez mais tomado pelo caos?

 

A estratégia do bolsonarismo

Não baixar a guarda. Manter-se em evidência. Manter a moral elevada. Manter-se organizado. Não há dúvida: tal é a estratégia do bolsonarismo. Que os objetivos e as motivações de Jair Bolsonaro não sejam idênticos aos objetivos e motivações de cada uma das pessoas que tomou parte nos acampamentos bolsonaristas e na invasão da Praça dos Três Poderes, pouco importa diante de um ideal maior: o ódio à esquerda. As razões do ódio são muitas, nem sempre convergem e por vezes se opõem, mas o alvo é o mesmo.

Dessa ótica, qualquer meia dúzia de pessoas que odeiam a esquerda e que por acaso se juntam para manifestar sua indignação é potencialmente expressão do bolsonarismo, o que não significa que o bolsonarismo não tenha suas formas de organização. Há evidências contundentes de que a invasão tenha sido orquestrada, planejada, financiada. Uma das evidências é o fato de não ter havido invasão e confronto na posse do presidente Lula – o que, para muitos, seria o mais óbvio. Porém, imagens de confronto entre duas multidões e de pessoas feridas e a notícia de eventuais mortes teria menos apelo popular do que imagens de invasão e depredação dos símbolos do poder palaciano, não por acaso em um domingo. A aposta é de que, dez anos depois, a insatisfação de 2013 ainda tenha combustível para queimar.

Na base da estratégia bolsonarista está o fato de o presidente Lula ter sido eleito com 43% de rejeição, segundo a última pesquisa realizada pelo Datafolha na véspera do segundo turno.[3] Vale lembrar que a rejeição de Lula cresceu nos meses que antecederam à eleição, fruto da campanha de Jair Bolsonaro e da ação do bolsonarismo – um aprendizado de que sua ação faz diferença.

É preciso reter o essencial na noção, já trivial, de polarização. Cada um dos lados defende a si mesmo, seu modo de existência, seus valores e convicções, mas, sobretudo, rejeita inteiramente o outro. É certo que a rejeição a Jair Bolsonaro foi, durante toda a campanha, superior à rejeição a Lula. A diferença é que, agora, Jair Bolsonaro se encontra fora, ao passo que Lula está na presidência. Nunca um presidente foi eleito com tamanha rejeição.

Por essa razão, é preciso também levar em conta o horizonte que temos pela frente. O que esperar do terceiro governo Lula? Será, como muitos esperam e têm afirmado, um governo mais à esquerda do que os dois anteriores? A questão não é simples e exige um artigo específico. Para meu propósito aqui, dois dados são suficientes: de um lado, sabe-se que a situação econômica internacional é pior do que aquela da primeira década deste século; de outro, a taxa de matrículas no ensino superior cresceu exponencialmente de 2010 até hoje, e tende a continuar crescendo, haja vista não apenas a demanda existente, mas também o próprio compromisso do governo Lula.[4]

Os dois primeiros governos Lula e o governo Dilma criaram expectativas elevadas, que foram apenas em parte atendidas. Em contrapartida, duríssimas condições de vida e de trabalho levaram a uma crescente frustração. O terceiro governo Lula terá condições de fugir deste script? Haverá empregos qualificados para todos os egressos do ensino superior, em um quadro econômico menos favorável e com uma demanda maior e crescente por empregos qualificados? É improvável.

Essa é a bomba-relógio no colo de Lula, que as esperadas políticas de ampliação de direitos, as políticas sociais e as medidas de elevação da taxa de ocupação e de renda não serão capazes de compensar, em que pese sua inestimável importância. Tudo indica que um número cada vez maior de engenheiros, administradores e advogados terá de se contentar com empregos muito aquém da qualificação conquistada – de que é emblemática a atuação como motorista de aplicativo. Se assim for, o ressentimento, fonte da insatisfação que eclodiu em 2013, e que origina, conserva e alimenta toda ordem de discursos e ideologias direitistas, tende a crescer.

Crises também são oportunidades.[5] O bolsonarismo sabe disso e quer manter o ânimo elevado para, nos momentos de crise, aproveitar-se da situação, apresentando-se como alternativa. Escândalos de corrupção são apenas uma parte da insatisfação – e nada garante que novos escândalos não venham à tona. É na economia que reside sua fonte principal.

 

A ação em Brasília

A ação de bolsonaristas em Brasília no 08 de janeiro, um dos mais graves atentados contra a democracia no Brasil nas últimas décadas, deve ser encarada no quadro maior da conjuntura política do Brasil e da estratégia do bolsonarismo.

Qualquer que seja o rótulo que se dê à multidão de invasores e depredadores, pouca diferença faz. Menos ainda o destino daqueles que foram e ainda serão identificados, peças de um processo político do qual pouco sabem e que se desenrola no longo prazo. A invasão foi bem-sucedida e cumpriu um objetivo tático: em uma época de permanente instabilidade, mandou a mensagem de que o ódio à esquerda está vivo, e de que não se tolerará o governo legitimamente eleito.

Nesse sentido, penso ser um equívoco encarar a ação como um atentado centralmente contra instituições, ou contra o Estado democrático de direito. Semelhante leitura torna incompreensível a razão pela qual a ação ocorreu no dia 08 de janeiro de 2023, uma semana após a posse de Lula, torna incompreensível que invasores e depredadores tenham apelado para o apoio de outras instituições – notadamente, as Forças Armadas – e que certas instituições e agentes públicos de relevo tenham no mínimo sido lenientes em face da ação, e torna incompreensível, sobretudo, o adequado entendimento dos discursos que tende a produzir no curto, médio e longo prazo e dos afetos que tende a alimentar. Sem dúvida instituições foram atacadas, mas o alvo é a esquerda e aqueles que, no imaginário da multidão, dão guarida ou apoiam a esquerda.

 

O dilema da esquerda

Desde o início das manifestações de bolsonaristas nas rodovias e em frente a quartéis, em que os apelos de intervenção militar foram renovados logo após as eleições, os defensores do Estado democrático de direito têm um dilema de monta: sendo antidemocráticas, como desmobilizar tais manifestações, que se tornaram permanentes, se o único meio legal de desmobilização são exatamente as mesmas forças para as quais os manifestantes-golpistas apelam e no interior da quais é representativa a simpatia em relação às manifestações?

Falou-se de leniência e negligência por ocasião da ação em Brasília, sobretudo por parte da Polícia Militar do Distrito Federal. É pouco. Há evidências de que a mesma polícia atuou no sentido de incentivar e mesmo de apoiar logisticamente a multidão bolsonarista. Na mesma direção, o secretário de segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, que fora ministro da Justiça de Bolsonaro, estava na Florida durante a ação, e na imprensa deu-se notícia de que ele teria se encontrado o ex-presidente. Uma eloquente coincidência.

Desde 2013 tornaram-se comuns manifestações golpistas protagonizadas por manifestantes trajados de verde e amarelo. São esses os manifestantes em defesa da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff. É irônico que esses manifestantes, que hoje têm o privilégio de manifestar-se com tudo pago por empresários bolsonaristas (café da manhã, almoço, jantar, transporte, banheiros químicos etc.), ontem acusassem a esquerda de “mortadela”.

O que dizer da diferença de tratamento que as forças policiais dispensam aos manifestantes do verde-amarelismo e a manifestantes de esquerda? Estudantes e trabalhadores sem-teto e sem-terra fecham vias públicas em grandes cidades para protestar por direitos e contra medidas que restringem direitos, e as polícias militares com frequência intervêm com toda a violência, valendo-se de bombas de efeito moral e balas de borracha, sempre em nome do direito de ir e vir – como se pedestres e carros não pudessem ir e vir por vias alternativas. Quanto aos recentes bloqueios nas rodovias, que implicou em nada mais nada menos que desabastecimento, as polícias rodoviárias nada fizeram. Há imagens de policiais dando apoio aos manifestantes.

A conduta das forças policiais e das Forças Armadas, não apenas na recente ação em Brasília, mas em vários outros episódios, desde pelo menos 2013, apenas comprova o que todos sabemos: que as instituições são compostas de indivíduos e grupos, e que nessas instituições predomina um sentimento de ódio em relação à esquerda e ao atual governo. E sabemos que o mesmo sentimento tem força em outras instituições de relevo, como aquelas que compõem o chamado “sistema de justiça”.

A censura de Jair Bolsonaro à ação dá o tom da interpretação que, no interior dessas instituições, tende a ter lugar: repudia-se a ação dos bolsonaristas, assim como se repudia a ação da esquerda. Não surpreenderá se começarem a dizer que a ação dos bolsonaristas, em si reprovável, é, no entanto, uma reação à crise… causada pela esquerda.

O dilema da esquerda não é, para o bolsonarismo no interior das forças policiais e das Forças Armadas, um dilema, mas, paradoxalmente, uma oportunidade. Quanto mais se apela a essas instituições para o restabelecimento da ordem democrática, mais se fortalece e mais se confere importância e evidência a atores cujo interesse e motivação é golpista, e mais se alimenta o contato e a solidariedade entre tais atores e uma multidão com extraordinária força de ânimo, disposta a tudo em defesa de Deus, da pátria, da propriedade, da moral, da honra, da família, enfim, da ordem, valor sagrado para aquelas mesmas forças. Não são suficientes as imagens, abundantes e recorrentes, de policiais e de militares declarando apoio a manifestantes nos últimos anos?

 

A política de volta

Com o historiador alemão Reinhart Koselleck, sabemos que a mudança no horizonte de expectativas altera o campo de experiência passado. Se hoje a maioria da população tende a repudiar a ação – Jair Bolsonaro e seu círculo sabe disso –, futuras crises podem alterar essa experiência, tornando-a aceitável e justa aos olhos da mesma maioria, ou parte dela. Essa é a aposta do bolsonarismo. Para tanto, a condição é estar vivo, atuante e em evidência.

A estratégia do bolsonarismo é manter-se em evidência alimentando o (e alimentando-se do) ódio à esquerda – e a indivíduos e instituições que se considera seus aliados –, vista como inimiga porque produtora do caos, uma ameaça a valores e ideais maiores, até transcendentes, e ao tipo de existência próprio que, da ótica do bolsonarismo, deve ser defendido e preservado a qualquer custo.[6] Manter-se vivo e atuante para, aberta a ocasião, apresentar-se como alternativa de poder – com ou sem Jair Bolsonaro.

Contra o bolsonarismo, não há remédio senão a elaboração e a condução muito bem calculada de uma estratégia política que, além de enfrentar os déficits e retrocessos que se acumularam desde 2014, atenda efetivamente às elevadas expectativas que o próprio governo criará, e que têm menos a ver com discursos e ideologias – ainda que essa seja uma dimensão relevante – do que com condições muito concretas de vida e de trabalho.

*Antônio David é doutor em filosofia pela USP.

Notas


[1] Durante a campanha eleitoral de 2014, Dilma Rousseff esquivou-se de declarar se faria ou não o ajuste fiscal reclamado pelo mercado, enquanto acusava seu adversário, Aécio Neves, de defender políticas que implicariam em desemprego e queda na renda. Ao cabo, Dilma venceu Aécio por margem estreita (51,64% contra 48,36% dos votos), com destaque para o empate na faixa de renda familiar de 2 a 5 salários mínimos (50% para cada), segundo a pesquisa do Datafolha realizada na véspera do segundo turno. A política de austeridade foi o principal vetor que levou a uma drástica perda de apoio popular por parte da mandatária – a maior da série histórica até aquele momento. Segundo o Ibope, em dezembro de 2014, pouco antes do anúncio de Levy como ministro da Fazenda, o governo era avaliado como bom ou ótimo por 40% da população, regular por 32% e ruim ou péssimo por 27%; em março de 2015 – portanto, apenas três meses depois –, apenas 12% consideravam o governo bom ou ótimo, 23% regular e exponenciais 64% avaliavam o governo como ruim ou péssimo.

[2] Recomendo ao leitor o relatório da pesquisa etnográfica coordenada pela antropóloga Isabela Oliveira Kalill: Kalil, I. O. (coord.). “Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro?”. Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP, out. 2018. Disponível em <https://www.fespsp.org.br/upload/usersfiles/2018/Relat%C3%B3rio%20para%20Site%20FESPSP.pdf>.

[3] Dentre aqueles que rejeitam só Lula. A rejeição a Bolsonaro foi de 48%. A rejeição a ambos, 3%.

[4] Segundo o perfil da amostra da pesquisa do Datafolha de 29 de outubro de 2022, na faixa etária de 25 a 34 anos os percentuais de eleitores com ensino fundamental, ensino médio e ensino superior eram, respectivamente, 12%, 53% e 35%, e, na faixa etária de 16 a 24 anos, 6%, 70% e 24%.

[5] Emprego “crise” no sentido trivial do termo.

[6] Com isso, sigo aqueles intérpretes para quem foi o bolsonarismo que, por atuar com base na noção de inimigo – na contramão, portanto, do discurso corrente da “pacificação” –, reintroduziu no Brasil a política em seu grau máximo, como estabelecera Carl Schmitt.

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