A guerra Hamas-Israel

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Como é possível chegarmos a tais patamares de destruição entre o pequeno e violento grupo Hamas e o também pequeno mas poderoso Estado de Israel?

Nestes dias de outubro assistimos, espantados, a guerra que explodiu entre o grupo terrorista Hamas, da Palestina e o Estado de Israel, atacado de surpresa e o forte revide deste último. Dada a violência empregada,vitimando centenas de pessoas de ambos os lados,especialmente a população inocente, pareceria que irrompeu o cavalo do Apocalipse, aquele da guerra destruidora (Apoc 9, 13-19).

Os foguetes, ao mísseis, os drones, os tanques, os bombardeiros, os caças, os as bombas inteligentes e os próprios soldados, feitos pequenas máquinas de matar, se parecem a figuras saídas das páginas do livro do Apocalipse.

Todos os que viemos de uma visão pacifista do mundo, da ecologia da integração harmônica das oposições, do processo evolucionário, concebido como aberto para formas cada vez mais complexas, altas e ordenadas de relações e mesmo as advertências do Papa Francisco sobre o alarme ecológico, nos perguntamos angustiados: como é possível chegarmos a tais patamares de destruição?

Como entender os fenômenos que acompanham o cenário desta guerra, como a invasão de Israel por terroristas do Hamas, matando indiscriminadamente civis, sequestrando pessoas, crianças, idosos e militares, os fake news, a distorção planejada dos fatos e a manipulação das crenças religiosas? Importa não esquecer os muitos anos de dura dominação israelense sobre a região de Gaza e dos palestinos em geral. Isso provocou ressentimento e muito ódio que está na base dos permanentes conflitos na região. Mas tudo isso não cala a pergunta: o que somos nós, seres humanos, capazes de tanta barbárie?

E as guerras se transformaram cada vez mais em guerras totais, fazendo mais vítimas entre as populações civis do que entre os combatentes. Max Born, prêmio Nobel de física (1954) denunciou a prevalência da matança de civis na guerra moderna. Na primeira guerra mundial morriam só 5% de civis, na segunda guerra, 50%, na guerra da Coreia e Vietnam 85%. E dados recentes dão conta de que contra o Iraque e a ex-Iugoslávia,na Ucrânia 98% das vítimas são civis. Na presente guerra, entre o grupo Hamas e Israel os dados deverão ser de semelhante proporção, pelo que se deduz das palavras ameaçadores do premier israelense, Benyamin Netanyahu.

Segundo o historiador Alfred Weber, irmão de Max Weber, dos 3.400 anos de história da humanidade que podemos datar com documentos, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 não foram certamente de paz mas de trégua e de preparação para outra guerra.

Face a esse drama assustador irrompe uma interrogação radical: qual é o sentido do ser, da vida e da história? Com o iluminar esse anti-fenômeno?

Não temos outra categoria para iluminar esse enigma senão reconhecer: é a explosão e a implosão da demência, inscrita no ser humano, assim como o conhecemos. Somos também seres de demência, de excesso, de vontade de dominar, esganar e assassinar. Isso foi amplamente ilustrado nas guerras do século XX que implicaram no morticínio de 200 milhões de pessoas e nos atos espetaculares perpetrados pelo terrorismo e fundamentalismo islâmico como a destruição das Torres Gemêas nos EUA e atualmente pela surpreendente e terrível ataque do grupo terrorista Hamas (parte rejeitada pelos palestinos) ao Estado de Israel.

O enigmático é que essa demência vem sempre junto com a sapiência. A sapiência é a nossa capacidade de amar, de cuidar, de se extasiar e de abrir-se ao Infinito. Somos, simultaneamente, todos sem exceção, sapiens e demens, vale dizer, seres humanos sapientes e dementes.

O paradigma dominante de nossa cultura, assentado sobre a vontade de poder e de dominação, criou as condições para que nossa demência coletiva se manifestasse poderosamente e predominasse. Esse espírito de guerra está presente na economia de mercado financeirizada, na guerra do trigo, do milho, dos carros, dos computadores,dos celulares, dos grupos religiosos e até de centros de pesquisa.

Por outro lado, nunca deixou de aparecer, em tempo algum, também nossa dimensão sapiente. Praças do mundo inteiro se enchem de multidões clamando por paz e nunca mais a guerra, sempre que a ameaça de conflito é suscitada, como forma de resolução de problemas. Líderes políticos, intelectuais e religiosos, erguem sua voz e alimentam o lado luminoso e pacífico dos seres humanos e não nos deixam desesperar. Jesus, São Francisco de Assis, M. Gandhi, Luther King Jr, Dom Helder Câmara, entre outros se transformaram em referências da anti-violência e paladinos da paz.

Que saída encontraremos para esse problema com dimensões metafísicas? Até hoje não sabemos exatamente.

A saída mais realista e mais sábia parece ser aquela, expressa na “oração da paz” de São Francisco de Assis, o irmão universal, da natureza, dos animais, das montanhas e das estrelas. Nessa oração, amplamente divulgada e feita credo comum pelo macroecumenismo, vale dizer, pelo ecumenismo entre as religiões e as igrejas, encontramos uma chave iluminadora.

Os termos da oração deixam claro a consciência do caráter contraditório da condição humana, feita de amor e de ódio, de sapiência e de demência. Parte-se desta contradição, mas se afirma confiadamente o polo positivo com a certeza de que ele irá limitar e integrar o polo negativo.

A lição, subjacente à oração de São Francisco, é essa: não se cura a demência senão reforçando a sapiência. Por isso, em suas palavras: “onde houver ódio, que eu eu leve o amor; onde houver discórdia que eu leve a união; onde houver desespero, que eu leve a esperança; onde houver trevas, que eu leve a luz”. E importa mais “amar que ser amado, mais compreender que ser comprendido, mais perdoar que ser perdoado, pois é dando que se recebe e é morrendo que se vive para a vida eterna”.

Nessa sabedoria dos simples se encontra, quiçá, o segredo da superação das vontades dos que querem a violência e a guerra como forma de resolver conflitos ou de fazerem valer os interesses de uns contra os outros, como está ocorrendo na atual guerra Hamas-Israel.

O caminho da paz, ensinava Gandhi, é a própria paz. Só meios pacíficos produzem a paz. A paz é, a um tempo, meta e método, fim e meio. Oxalá esse espírito acabe triunfando sobre a violência brutal na presente guerra, profundamente assimétrica, entre o pequeno e violento grupo Hamas e o também pequeno mas poderoso Estado de Israel.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz (Vozes).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Tales Ab'Sáber Gerson Almeida Otaviano Helene Lincoln Secco Francisco Fernandes Ladeira Marcus Ianoni Salem Nasser Henri Acselrad Maria Rita Kehl Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Martins Anselm Jappe Airton Paschoa Rodrigo de Faria Dennis Oliveira Paulo Capel Narvai Leonardo Boff Marjorie C. Marona Fernando Nogueira da Costa Luiz Marques Ronald Rocha Remy José Fontana João Feres Júnior Michel Goulart da Silva Mariarosaria Fabris Gabriel Cohn Eliziário Andrade Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Thomas Piketty Dênis de Moraes Antonino Infranca Henry Burnett Eugênio Trivinho Luis Felipe Miguel Gilberto Lopes Ricardo Fabbrini Renato Dagnino Antonio Martins Ricardo Antunes Daniel Costa Ronaldo Tadeu de Souza Bernardo Ricupero Sergio Amadeu da Silveira Juarez Guimarães Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Everaldo de Oliveira Andrade Antônio Sales Rios Neto Marcos Aurélio da Silva Heraldo Campos José Raimundo Trindade Francisco de Oliveira Barros Júnior Annateresa Fabris Luiz Werneck Vianna João Paulo Ayub Fonseca Afrânio Catani Elias Jabbour José Machado Moita Neto Gilberto Maringoni Boaventura de Sousa Santos Fábio Konder Comparato Lorenzo Vitral Caio Bugiato Sandra Bitencourt Milton Pinheiro Eleutério F. S. Prado Érico Andrade Marcos Silva Vladimir Safatle Alysson Leandro Mascaro Samuel Kilsztajn Ladislau Dowbor Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza Kátia Gerab Baggio José Luís Fiori João Sette Whitaker Ferreira Leonardo Sacramento Igor Felippe Santos Manchetômetro Lucas Fiaschetti Estevez Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre Aragão de Albuquerque Michael Löwy Eduardo Borges Walnice Nogueira Galvão Chico Alencar Claudio Katz Daniel Brazil Benicio Viero Schmidt Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Sérgio Pinheiro Celso Favaretto João Carlos Loebens Jean Marc Von Der Weid José Geraldo Couto Rafael R. Ioris Chico Whitaker Leonardo Avritzer Luiz Carlos Bresser-Pereira Andrés del Río João Lanari Bo Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Freitas Barbosa Flávio R. Kothe Michael Roberts Priscila Figueiredo Luís Fernando Vitagliano Luiz Roberto Alves Ricardo Musse Marilena Chauí Jorge Branco João Adolfo Hansen Armando Boito Bruno Machado Ronald León Núñez Anderson Alves Esteves Liszt Vieira Tadeu Valadares Flávio Aguiar Julian Rodrigues Rubens Pinto Lyra Manuel Domingos Neto Paulo Fernandes Silveira Vinício Carrilho Martinez Jorge Luiz Souto Maior Andrew Korybko Tarso Genro Celso Frederico Daniel Afonso da Silva André Márcio Neves Soares Leda Maria Paulani Luiz Bernardo Pericás Carlos Tautz Yuri Martins-Fontes Mário Maestri Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan José Costa Júnior Osvaldo Coggiola José Micaelson Lacerda Morais Francisco Pereira de Farias José Dirceu Eugênio Bucci Slavoj Žižek Denilson Cordeiro Jean Pierre Chauvin Luciano Nascimento Luiz Renato Martins Luiz Eduardo Soares Marcelo Guimarães Lima Ari Marcelo Solon Berenice Bento Marcelo Módolo Carla Teixeira Vanderlei Tenório Eleonora Albano André Singer Atilio A. Boron João Carlos Salles

NOVAS PUBLICAÇÕES