A Ucrânia já ganhou?

Imagem: Ramy Kabalan
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Por JOSÉ LUIS OREIRO*

Comentários ao artigo de Luiz Carlos Azedo no jornal “Correio Braziliense”

Em geral, gosto muito dos artigos do competente jornalista Luiz Carlos Azedo que sabe fazer análises refinadas sobre os bastidores da política em Brasília. Seu artigo intitulado “Nas entrelinhas: Não adianta ficar Putin, a Ucrânia já ganhou”, contudo, não foi o caso. Publicado  em 01 de março de 2022 é um exemplo clássico do erro que o personagem Don Victor Corleone no filme “O poderoso Chefão 3” advertia ao seu sobrinho (que iria sucede-lo na chefia da famiglia Corleone) jamais deveria cometer: “não odeie seus inimigos, pois isso afeta o seu julgamento”.

Independente dos sentimentos que cada um de nós possa ter por Putin e pela clara violação ao direito internacional que a Rússia cometeu ao invadir um país soberano, violando a Carta da ONU e todo o direito internacional, precisamos analisar os fatos com o cérebro e um coração de gelo, não com o fígado.

O artigo começa com a frase “política e moralmente, o presidente russo já está derrotado; pode até ocupar Kiev (…) porém, cedo ou tarde terá que bater em retirada”. Aqui Azedo mistura alhos com bugalhos. O objetivo de uma guerra não é (necessariamente) ganhar pontos com a opinião pública mundial ou mostrar superioridade moral sobre o resto da comunidade de nações, mas (i) destruir as forças do inimigo e (ii) ocupar os objetivos estratégicos definidos nos planos de ação militar. No que se refere aos objetivos da guerra não só a Ucrânia está muito longe de alcança-los, como, ao contrário, é a Rússia que, após apenas 5 dias de conflito, está as portas de Kiev e Karkov, as mais importantes cidades do país e praticamente já cortou o acesso da Ucrânia ao mar de Azov e está prestes a conquistar todo o litoral da Ucrânia no mar negro, deixando o país sem nenhuma saída para o mar.

A não ser que a OTAN esteja disposta a escalar o conflito, mandando tropas para lutar na Ucrânia, o que converteria o conflito na Terceira Guerra Mundial, é uma questão de tempo até que a Rússia assuma o controle das regiões que realmente importam na Ucrânia do ponto de vista militar. Nesse contexto, A Rússia, não a Ucrânia, já ganhou.

Para um observador externo a “demora” da Rússia em tomar Kiev e Kharkov é um sinal claro de que a resistência ucraniana está sendo mais forte do que a esperada pelos russos. Isso pode ser em parte verdade, mas a história militar da Segunda Guerra Mundial mostra ad-nausean que a tomada de um grande centro urbano exige combates rua a rua, casa a casa os quais tendem a cobrar um preço muito alto das forças invasoras. Para reduzir esse custo as forças atacantes devem lançar, inicialmente, uma pesada barragem de artilharia sobre a cidade a ser conquistada de forma a reduzir a pó a infraestrutura defensiva.

Foi exatamente isso que o exército soviético fez sobre Berlim em abril de 1945 (vejam https://www.youtube.com/watch?v=1bMjda0rCjY) e mesmo assim levou quase um mês para conquistar a capital do III Reich.

Uma hipótese plausível é que Putin não esteja querendo lançar, neste momento, um ataque dessa magnitude para não criar um ressentimento incurável entre os ucranianos, os quais ele deseja que voltem a fazer parte do “Grande Império Russo” que ele planeja reconstruir há muito tempo.

Mas voltemos ao texto do Azedo. A segunda parte de sua argumentação é que “cedo ou tarde” a Rússia será obrigada a se retirar da Ucrânia. Ok, isso é uma hipótese possível. A questão a ser feita é: por que isso ocorreria? Aqui Azedo faz duas analogias históricas desprovidas de qualquer sentido. A primeira é com o Iraque na primeira guerra do golfo. De fato, o Iraque ocupou o Kuwait em 1991 e alguns meses depois foi obrigado a bater em retirada. Mas isso não ocorreu pela sublevação da população local, mas pela ação militar coordenada pelos Estados Unidos, Reino Unido e França que concentraram na Arábia Saudita uma força militar várias vezes superior – em número e qualidade do equipamento militar – as forças do Iraque. Não me parece que a OTAN esteja, no momento, disposta a intervir militarmente para salvar a Ucrânia, mas apenas a mandar pouco mais do que “apoio moral” para o país.

A segunda analogia sem sentido é com a retirada de Napoleão Bonaparte da Rússia em 1812. Aqui cabem algumas observações: (i) Le Gran Armeé nunca conseguiu destruir o exército russo, o qual constantemente se negava a dar combate ao invasor francês, ciente que a Rússia era grande o suficiente para fazer recuos táticos sem comprometer o curso da guerra e (ii) A França não estava preparada para uma guerra longa e muito menos para enfrentar o general “inverno russo”. Não me parece que nenhuma dessas situações está posta na guerra da Ucrânia, até porque se tem uma coisa que os russos estão bastante acostumados é com seu próprio inverno, o qual costuma ser mais ameno na Ucrânia dada sua posição mais ao sul.

Embora Azedo não tenha tratado no seu artigo, uma força que poderia levar Putin a bater em retirada seria o custo das sanções econômicas sobre a Rússia. O congelamento de parte das reservas internacionais do Banco Central da Rússia e a exclusão de alguns bancos russos do sistema Swift produziram uma corrida aos bancos na Rússia, uma forte desvalorização do rublo e o aumento da taxa básica de juros para 20% ao ano, o que certamente irá elevar a inflação na Rússia e produzir uma contração do nível de atividade econômica, afetando de forma bastante negativa o povo russo.

Mas aqui cabem duas observações. Em primeiro lugar, existe muito jogo de cena nas sanções econômicas do Ocidente sobre a Rússia. A exclusão do sistema Swift não atingiu os pagamentos dos países europeus ao gás importado da Rússia, o que garante, por si só, a continuidade de parte importante das exportações da Rússia para a Europa. Além disso, o suposto congelamento dos ativos dos oligarcas russos atinge apenas os ativos que eles tenham em bancos na Europa e nos EUA, não o grosso de suas aplicações financeiras que estão em paraísos fiscais como as ilhas virgens britânicas, onde ministros da economia de países sul-americanos também costumam manter seu dinheiro para a aposentadoria.

Em segundo lugar, ao contrário do Brasil que amarrou as mãos dos policy makers com regras fiscais como o Teto de Gastos e com a “autonomia do Banco Central”, as autoridades russas podem lançar mão de vários instrumentos de política econômica – como a adoção de controles de saída de capitais do país sobre residentes na Rússia, adotada para amortecer os efeitos dessas sanções sobre a economia russa.

Por fim, devemos deixar claro que essas sanções econômicas têm um efeito boomerang sobre o Ocidente: o aumento dos preços do petróleo, gás, trigo, milho, óleo de girassol e soja irá produzir um aumento da inflação não apenas na Rússia, mas no mundo inteiro, podendo obrigar os Bancos Centrais da Europa, Inglaterra e Estados Unidos a antecipar a elevação da taxa de juros prevista apenas para o segundo semestre. A elevação dos juros combinada com a aceleração da inflação seria um balde de água fria na recuperação das economias dos Estados Unidos e União Europeia após os efeitos dramáticos da crise da covid-19. Em outras palavras, as sanções econômicas do Ocidente sobre a Rússia também irão se voltar contra os países ocidentais.

O lado doméstico desse imbróglio é que as chances de reeleição de Jair Messias Bolsonaro irão virar pó nos próximos meses quando os efeitos econômicos da guerra da Ucrânia atingirem em cheio a economia brasileira. É melhor o “Messias” já ir se acostumando com a ideia de ter que passar a faixa presidencial para Luís Inácio Lula da Silva em janeiro de 2023.

*José Luis Oreiro é professor de economia na UnB. Autor, entre outros livros, de Macroeconomia do desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (LTC).

Publicado originalmente no blog do autor.

 

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