O que fazer no quartel?

Imagem: Polina Tankilevitch
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Qualquer projeto de país deve saber o que fazer das Forças Armadas

Democratas sinceros dizem: os militares devem voltar ao quartel. Se mal pergunto: fazer o quê? Formar novos Bolsonaros, Helenos, Villas Boas, Pazuellos, Etchegoyens ou coisa pior? Desenvolver “sinergias” com o Judiciário e outros braços do Estado, como aponta Piero Leirner? Cooptar aliados civis distribuindo medalhas a mão cheia, como alerta Ana Penido? Melar a disputa eleitoral com tuitadas, versões contemporâneas de sempiternas ameaças à ordem democrática, como frisa Eliézer Rizzo? Pintar meio fio, como sugeriu, num desabafo, Cristina Serra? Atuar como empreiteira de obras de engenharia, como mencionou Lula? Manter operante a “família militar”, a maior e mais tresloucada organização política reacionária do país?

Inventar versões da história do Brasil arrogando-se a condição de pais da pátria e estigmatizando os que lutaram por mudanças sociais? Arapongar os que sonham com terra, trabalho e moradia? Exercitar-se para operações de garantia da lei que beneficia os de cima e da ordem que massacra os de baixo? Esbagaçar dinheiro público comprando armas e equipamentos que não defendem o Brasil, mas reforçam o poderio de potências imperiais, como tenho insistido?

Quem pretende um país soberano e uma sociedade que supere a cruel herança colonial precisa saber o que fazer com as fileiras. Até agora, generais disseram o que julgam ser bom e ruim para o país. Passa da hora de os brasileiros definirmos como devem ser e o que devem fazer as fileiras que custeamos. A defesa do Brasil é assunto eminentemente político.

Não cabe pensar que os militares sejam incompetentes para governar. São tão competentes que impuseram regimes e governaram ou condicionaram governantes desde o final da monarquia! Sua competência está demonstrada de forma eloquente: o Brasil preservou estruturas arcaicas e manteve a dependência do estrangeiro poderoso. Dizer que são incompetentes, como fizeram José Luís Fiori e William Nozaki, é mascarar a evidência: os propósitos das fileiras contradizem os anseios sociais.

Se levarmos a sério a soberania popular, respondamos a questão: o que fazer com as fileiras? Sem respondê-la, demonstraremos medo de sermos felizes.

É improducente e desarrazoado falar em “projeto de nação”, “projeto de país” ou “projeto de sociedade” sem saber o que fazer das fileiras. É vão pensar em política externa altiva e ativa sem instrumentos de força. O mesmo, quanto ao desenvolvimento econômico e a mudança social benfazeja. As fileiras de que dispomos foram estruturadas para um país atrasado sob todos os aspectos. Digo, todos, inclusive o atraso científico e tecnológico.

Olhando de perto, a legenda nacionalista e desenvolvimentista de outrora decorreu de situações forçadas, entre as quais o reclamo social impulsionado pelos comunistas. Voltemos a ler João Quartim de Moraes.

Sem a pressão dos comunas, as fileiras poderiam ter apoiado Hitler. Os comunas teceram loas aos generais que contribuíram para a autonomia energética, a ciência e a modernização da infraestrutura. Enfim, contribuíram para firmar boa imagem das fileiras.

Os fardados devem muito aos comunistas. Só a expedita ordem de quem lhes vende armas e equipamento explica a fúria com que bateram e sangraram patriotas e reformistas sociais. No mundo inteiro, comunistas mostraram que sabem morrer pela pátria. Quem mata comunista trai a pátria.

Precisamos mudar o quartel estruturado para manter leis injustas e ordens iníquas. Para tal, cabe estudá-los. De todos instrumentos de Estado, as fileiras são as mais complexas e perigosas. Apegam-se à tradição como a lagarta ao milharal do lavrador indefeso.

Falando em tradição, adorei quando o presidente eleito do Chile lembrou Gustav Mahler, um judeu da Boêmia que, sendo romântico, abriu caminho para a sinfonia moderna. Suas composições eram longas e complexas, sugeridas pelas ruas. Mahler disse que a tradição não consistia no culto às cinzas, mas na preservação do fogo. Morreu em 1911, sentindo os fragores da hecatombe.

Ao pensar na volta das fileiras ao quartel, apuremos os ouvidos. A guerra está vindo, se é que não começou. Que as fileiras se prepararem. Para isso as custeamos, não para disputar boquinhas em cargos governamentais ou para a caça desvairada aos que consideram desalmados.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Carlos Salles José Costa Júnior Tadeu Valadares Atilio A. Boron Juarez Guimarães Luiz Marques Everaldo de Oliveira Andrade Lucas Fiaschetti Estevez João Adolfo Hansen Leonardo Avritzer Luiz Bernardo Pericás João Carlos Loebens Alexandre Aragão de Albuquerque Manuel Domingos Neto Eduardo Borges Rubens Pinto Lyra Lorenzo Vitral Paulo Fernandes Silveira José Geraldo Couto Bruno Machado Antônio Sales Rios Neto Ricardo Fabbrini Luiz Roberto Alves Rodrigo de Faria Andrés del Río Plínio de Arruda Sampaio Jr. Milton Pinheiro Francisco Pereira de Farias Julian Rodrigues Tarso Genro João Lanari Bo Salem Nasser João Feres Júnior João Paulo Ayub Fonseca Berenice Bento José Micaelson Lacerda Morais Benicio Viero Schmidt Mário Maestri Henri Acselrad Afrânio Catani Jorge Luiz Souto Maior Gilberto Maringoni Marilena Chauí Kátia Gerab Baggio Renato Dagnino Gerson Almeida Boaventura de Sousa Santos Priscila Figueiredo Alexandre de Freitas Barbosa José Dirceu Michel Goulart da Silva Eleutério F. S. Prado Celso Favaretto Dênis de Moraes Matheus Silveira de Souza Daniel Afonso da Silva Luis Felipe Miguel Michael Löwy Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Andrew Korybko Marcus Ianoni Jorge Branco Fábio Konder Comparato Chico Alencar Luiz Eduardo Soares Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jean Pierre Chauvin Lincoln Secco Eugênio Bucci Flávio Aguiar Celso Frederico Dennis Oliveira Ronald Rocha Eugênio Trivinho Jean Marc Von Der Weid Carlos Tautz Daniel Brazil Bento Prado Jr. Tales Ab'Sáber Manchetômetro Gabriel Cohn Paulo Martins Leonardo Sacramento Francisco de Oliveira Barros Júnior Ronald León Núñez Vanderlei Tenório Vladimir Safatle Antonino Infranca Flávio R. Kothe Ricardo Antunes Liszt Vieira Ladislau Dowbor Eliziário Andrade Heraldo Campos Ronaldo Tadeu de Souza Airton Paschoa José Raimundo Trindade Igor Felippe Santos Alexandre de Lima Castro Tranjan Érico Andrade Marjorie C. Marona José Machado Moita Neto Marcelo Módolo Mariarosaria Fabris Paulo Nogueira Batista Jr Luciano Nascimento João Sette Whitaker Ferreira Daniel Costa Luís Fernando Vitagliano Ricardo Abramovay Fernão Pessoa Ramos André Márcio Neves Soares Valerio Arcary Armando Boito José Luís Fiori Yuri Martins-Fontes Chico Whitaker Ari Marcelo Solon Marcelo Guimarães Lima Marcos Aurélio da Silva Claudio Katz Alysson Leandro Mascaro André Singer Michael Roberts Annateresa Fabris Leonardo Boff Leda Maria Paulani Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Capel Narvai Samuel Kilsztajn Sandra Bitencourt Eleonora Albano Bernardo Ricupero Luiz Renato Martins Osvaldo Coggiola Fernando Nogueira da Costa Maria Rita Kehl Slavoj Žižek Anselm Jappe Carla Teixeira Marcos Silva Ricardo Musse Caio Bugiato Rafael R. Ioris Vinício Carrilho Martinez Elias Jabbour Gilberto Lopes Thomas Piketty Antonio Martins Luiz Werneck Vianna Denilson Cordeiro Luiz Carlos Bresser-Pereira Walnice Nogueira Galvão Anderson Alves Esteves Remy José Fontana Francisco Fernandes Ladeira Sergio Amadeu da Silveira Henry Burnett Otaviano Helene Paulo Sérgio Pinheiro

NOVAS PUBLICAÇÕES